sexta-feira, outubro 29, 2004

Frase do dia: "Hoje, senti mesmo a necessidade de ter de volta os farrapos dos teus olhos".


"Completamente morto... matei-o. Era ele ou ele. Foi mais forte do que eu. Não consegui resistir à tentação de escapar à normalidade. Uma simples moeda a girar e a parar de um lado ou do outro, um simples toque, uma simples conversa, uma simples morte. Não consegui fugir à tentação de fugir. A de olhar-me ao espelho e apenas constatar que a vida passa, que morrerei um dia, grande treta, porque a mesma morte, em si, não é nada ou pouca coisa. Sim, há coisas muito piores que a morte, se é que a morte é má, visto uma inevitabilidade nunca poder ser algo mais diferente do que já é. Aceita-se e pronto.
Mas há coisas bem piores do que a morte. O deixar andar. A inacção. O desistir de sonhar, o desistir de viver. Eu sei bem o que isso é, vivi muitos anos assim, ou limitava-me a existir assim, é uma cartilha que conheço de trás para a frente e de frente para trás. Mas... mesmo agora, ainda não sei bem em que acredito. Como se fosse necessário acreditar no que quer que seja no que quer que seja no que quer que seja. Qualquer coisa. É preciso".

sexta-feira, outubro 22, 2004

Frase do dia: "E sentes-te mais feliz se eu estiver abrigada?!"


"O dia quente, o calor de sol, os cada vez menos cabelos colados à testa. E ainda o vento.
Paro no café, vou chegar atrasado ao Centro. Não me importa mesmo nada. Não sei se me importa sequer chegar ou não.
Quando foi que a loucura começou? O que é que isto quer dizer? Nada, não quer dizer nada, mas, volta e meia e meia volta, sou assolado por pensamentos contínuos como este. De que posso estar mesmo louco. Mas, tal como tudo na minha vida, sou capaz de estar mesmo a exagerar. Está quente ainda, tal como o tempo. Quando acordei olhei para debaixo da cama e ele continuava lá. Morto.
Eu não estou louco. Aliás, a loucura em si não existe. É algo que a sociedade define. A sociedade define os padrões da normalidade e, logo, tudo aquilo que ultrapassa esses padrões socialmente aceites e definidos é, automaticamente, rotulado como sendo estranho ou nocivo. Não sei, apenas sei que é tudo definido pelos outros. Quando te afastas desse mesmo modelo que os outros definiram como sendo a normalidade vigente, aí sim, meu amigo, podes-te preparar sempre para duas coisas. Uma delas é poderes ser considerado um génio e, desta maneira, podes esperar pelos coros de anjos cintilantes a abanarem campainhas aos teus ouvidos e lindas e lindas mulheres desnudas de seios para a tua boca, almas para encheres até à raiz espermática, flores chocolates e vinho branco, orgia e festim, sangue e cigarros... todas as coisas nas quais a felicidade se alimenta. Mas... quando isso não acontece, quando a tua diferença notória não serve para vender nem dá lucro... é mesmo o frio branco de uma parede branca, parede branca, a perna cruzada de mini-saia da psicóloga da psicoterapia, ora diga lá, meu senhor, quando é que sente essa angústia tão grande no seu peito, é quando dorme, ou é apenas quando respira? E é apenas uma das inúmeras formas vazias de fim, da nulidade, do caos espasmódico de uma vida que se arrasta e arrastará sempre chutada para as margens. Só que, mesmo assim, a tua morte nunca será possível. Os que te rotulam como louco, como estranho, como outsider, não te podem deixar morrer, isso não, isso seria sempre o fim para eles. Mas não penses que é por gostarem tanto e tanto, tanto e tanto de ti, claro que não, não sejas ingénuo. A tua loucura justifica a sanidade deles. O seu ir para casa dizendo há cada louco neste mundo, embrulhando-se nos seus pesados cobertores de lã, sorrindo a sua normalidade pela janela para o frio embaciado de uma vida qualquer que não existe, pelo menos ali, ali no meio dos seus sonhos básicos de vida familiar respeitável. Mas lá no fundo, no fundo...
Uma sociedade doente precisa da doença exposta. Precisa de a definir. Precisa de criar inúmeras minorias para poder dizer, como num discurso de um político idiota em cima de um palanque, de mangas arregaçadas da camisa Boss para o povo, nós não, nós somos os sãos e os outros são loucos e são coitados por serem loucos. Mas não têm culpa de serem loucos e, apesar de serem loucos, nós estamos aqui para os tratar. A loucura é a maior das indústrias. Vende sempre bem e se fores mesmo um bom louco, poderás estar sempre a salvo. Mas quem te salva de ti mesmo? O que é que isso interessa?
Nada.
Matei-o.
Não devia estar sempre a repetir que o matei.
Eu já sei.
E ele também já o deve saber.
Porque está morto..."

segunda-feira, outubro 18, 2004

Frase do dia: "Salta o terceiro parágrafo."


"Num dia não tão longínquo quanto isso pensei em ti acto falhado corda ao pescoço dos dias naufragados pela inércia barco à deriva sopro de encontro à terra de ninguém canto de sereia anos e anos depois ainda e mais para a frente o remorso das coisas que ficaram por dizer anos e anos atrás não tão longe nem tão perto já não sei dizer as palavras nem escrever o veneno ou o néctar de todas as formas normalizou-se a dor num estado passageiro de consistência inconsciente consciente de si mesma na inconsciência que consiste em já não acreditar acto falhado pensei em ti entrelaçado na corda do baloiço das crianças dias naufragados pela inércia barco à deriva náufrago sem terra e sem mar ainda e mais para a frente tão longe e tão perto ainda e mais para longe dia longínquo pensei em ti num leve esboço de um pensamento que se apaga".


RMM

terça-feira, outubro 12, 2004

Frase do dia: “Antes estranhavas a sombra, agora estranhas o silêncio”.


“Estou todo suado. A coordenadora está a olhar para mim e eu estou todo suado à frente do computador. Não, não é devido ao calor que eu transpiro, que eu sinto que se está a formar uma poça aos meus pés. É ela. São os seus olhos sobre mim. É ela que me faz suar, raios a partam. Não tens mais nada para fazer?!!
- Vem cá!- ela chama-me.
- Sim.- respondo como num murmúrio
Adentro o escritório. Decoração moderna, um certo ar de luxo excessivo lixo plantado nas minhas retinas enevoadas pelo suor que me escorre cabeça abaixo.
Ela começa a falar do projecto.
- A avaliação está para breve. Como é que vão os trabalhos finais.
Eu rio por dentro. Quais trabalhos? De que é que tu falas minha linda? Achas que alguém aqui dentro trabalha nalguma coisa? A começar por ti.
- Vão bem. A sala para a formação já está criada, só falta receber o aval das entidades que a vão ministrar. Foi um bom avanço. Com isso somos capazes de conseguir abranger uns seis ou sete agregados familiares. Aquelas pessoas que nós definimos que se enquadram no perfil de famílias disfuncionais. Tendo traçado as problemáticas, com base no tratamento estatístico do questionário social, tornou-se bastante mais fácil.
Ela olha para mim com atenção, mas duvido que perceba um terço do que estou a falar. Se o perceber bato-lhe as palmas, porque nem eu próprio sei. Mero vocabulário para a embalar, para nos embalar, palavras chaves, discurso teórico, tentar mostrar que existe realmente uma dinâmica dentro deste pântano. Tanto aqui, como lá fora.
E de resto é apenas isto. Um Centro Social miserável a funcionar dentro de um bairro social camarário. Duas assistentes sociais, dois psicólogos, um animador e um sociólogo. Eu sou o sociólogo. Seja lá o que isso for. Ela é quem coordena. O que é falso. Aqui não existe qualquer ordem. Pelo menos para mim. Tal como tudo na vida, também se rege pela orquestra filarmónica do caos.
- Sim senhor. Depois vem falar comigo quando tudo estiver pronto.
Eu digo que sim e ela... “ou melhor, vem antes...”; e é aquele olhar. O mesmo que me faz as virilhas ficarem a arder, pois é nessa zona que eu mais sinto que os seus olhos passeiam. Não sei não sei não sei
Volto para o computador. Desligo o programa em que trabalhava. Ela já fez a sua visita diária à sala comum dos técnicos. Abro o Word e escrevo tecla a tecla, tecla a tecla, o caminho para me levar para longe e tão bem longe daqui”.



sexta-feira, outubro 08, 2004


Frase do dia: “Vestindo o cadáver da juventude no armário”.


“Sempre que olho para um homem imagino sempre o seu cadáver. Fartei-me de olhar para ele. Matei-o.
Estou deveras cansado, passeio pela sala de cigarro aceso, alheio a todos os universos desfeitos de uma qualquer coisa a que se queira apelidar de vida. Mas, a verdade, é que a vida é assim mesmo: um simples passear pela sala na penumbra, porque as luzes acesas só servem para acentuar as sombras e eu apenas sinto que sou, ou que me tornei, numa única sombra imensa. Quem sou eu? Porquê, com 30 anos, a necessidade de formular essa pergunta? Uma pergunta que, talvez, eu sinta que não é de agora, que talvez já se tivesse enterrado de vez sob os escombros da perda e da falta de esperança... nulidade, sociedade, caos, cosmos aos pulos para se negar outra vez, o mundo lá fora e etc. e tal, tudo isso... nada existe. Mas o que é o mundo lá fora? Nada, nada que eu possa definir, algo a que possa chamar com o nome de todos os bois. Não consigo imaginar nada que eu não possa destruir depois. Nada que existe, existe na realidade. Não existe o ser, apenas o sendo. Da mesma forma também nunca se é nada, nada, apenas se vai sendo. E lá estou eu a cair no existencialismo das 4 da manhã quando dentro de pouco mais de 4 horas vou fingir que trabalho.
Estou cansado. Tal como me cansei de o olhar. E era ele ou ele. Por isso matei-o.
Espero que não apodreça tão cedo, embora, tenha uma vontade muito grande de o ver apodrecer, de ver cada centímetro e centímetro da sua pele a decompor-se, a deteriorar-se, a caminhar para o fim total. O mesmo fim total que não existe. Porque a mesma morte, em si, não existe, não existe o eu morro, apenas o eu vou morrendo. E foi por isso que eu o matei. Foi por isso que, agora e neste momento em que a solidão é uma lágrima amarga numa almofada, que eu, sim, talvez, não me sinta tão e apenas só. Era ele ou ele. Por enquanto, enquanto não começa a apodrecer e o cheiro pestilento não me começa a subir às narinas, está debaixo da minha cama, debaixo de mim, vai ser o seu lugar, sem eu saber até quando, porque ainda não pensei num sítio onde o enterrar, não interessa... neste momento não consigo pensar nisso.... talvez amanhã...
Sempre que olho para um homem imagino sempre o seu cadáver...
Cansei-me de olhar para ele...
Matei-o...
Era ele ou ele...”
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AINDA NÃO ME DEI AO TRABALHO DE ORDENAR ALFABETICAMENTE (AZAR!)