segunda-feira, novembro 29, 2004


Frase do dia: “Até te podes transformar no meu espelho, mas nunca te poderás transformar em mim”.

Chega.

Chega de tentar enganar o diabo tentando fazer crer que a culpa dos outros morre no nosso arrependimento mas não é bem assim não é tão fácil e sabes que o remorso colhido das árvores do jardim não trará a primavera dos nossos passos de volta agora regressas para o ponto de retorno do infinito com medo que o vento do inverno abra a porta e os corvos entrem outra vez em casa tu sabes e eu sei não basta calçar as meias e dizer que o frio não volta ao meu coração um ponto de fuga ao qual a esperança nunca mais regressa passeias pelo parque remoendo as lembranças do grande amor inacabado todos os dias falado ao café como um projecto de futuro num seguro de saúde da reforma daqui a trinta anos igual a um poema numa folha para alguém que não vai ler mas tu sabes amor que o tempo não volta.
RMM

quinta-feira, novembro 25, 2004


Frase do dia: “Nunca limpes o sangue da navalha”.

“Noite, como é estranho como esta noite me lembra uma outra tão atrás, ou... se calhar nem assim tanto, não importa, mas a verdade é que me lembra aquela noite. Aquela noite. Aquela noite que sucedeu ao dia em que lhe telefonei, aquele dia tão estranho, tão estranhamente mau, tão cheio de absurdo e neurose. Como aquela noite... depois de lhe ter telefonado e ela me ter dito ao telefone que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir. Mas o que queria eu conseguir? A que se referia ela? Não sei, desligou sem me dar qualquer resposta e eu fiquei pior do que já estava. Chutado, mais uma vez por ela, carregando no meu amargo ser em chamas um peito em carvão e brasas, dei por mim a olhar para o meu reflexo exposto no microondas da cozinha. Lá dentro a carne requentada dos restos do almoço do dia anterior girava no seu disco um velho clássico pop dos anos oitenta fora de moda e esquecido, morto. Mais morto do que a própria fome que desaparecia aos poucos. Mirei o meu reflexo no espelho e vi que chorava, umas poucas de lágrimas, mas mesmo assim era certo que... chorava de todas as formas chorava mas isso já passou adiante. O meu reflexo exposto, as lágrimas, a dor profunda, pensei encarando a figura disforme do meu rosto anguloso, os lábios grossos demais, os olhos demasiado grandes, mas sangrentos, o cabelo cada vez menos e menos, não interessa, adiante, olhei para a minha imagem e pensei que teria de começar tudo de novo outra vez. Que outra vez teria de tentar conhecer outra pessoa, que outra vez teria de me fazer jogar o jogo da aceitação e da renúncia, que teria de sair outra vez, que teria de conhecer e fazer por conhecer outra pessoa. Que teria de sair outra vez para as discotecas e bares, que teria de me fazer ver e ser visto, no jogo de aceitação de papéis, do predador e da presa, das voltas e voltas da mesma procura e da mesma busca sem o mínimo nexo. Ao olhar a minha imagem expressa no microondas fiz essa constatação. Ao olhar bem para mim, para a superficialidade do meu aspecto físico, constatei que ia ser difícil. Ao fechar os olhos e a olhar para mim, mas na suposta profundidade que se pensa que se tem e se conhece, vi que ia ser impossível.
Arranquei de carro nessa mesma noite, uma noite tão igual a esta, embora todas as noites sejam sempre iguais e dizer que era uma noite tão igual a esta não passar de uma treta. Talvez um reflexo de uma luz qualquer, um pressentimento, a minha turva visão baça, qualquer coisa, me tenha feito sugerir que, nesta noite, existe uma semelhança tão vincada com essa outra, tão desgarrada no tempo, tão descarnada de sonho e esperança.
Vi-a parada encostada junto ao parque de estacionamento em obras, mini saia preta, camisa vermelha, botas de cano alto, estatura média, cabelo curto castanho, olhos verdes, vinte anos no máximo, a cidade estava cheia de carros e pessoas e ela já tinha entrado e saído de, pelo menos, uns três carros nessa noite, ou durante esse período em que eu a observava. Ainda antes rodara e rodara sem nexo, a fiar-me na sorte, espreitando as brigadas ao longe, pequena garrafa de plástico cheia de vinho verde barato, o que havia na cozinha nada de jeito, cigarro atrás de cigarro, palavra atrás de palavra, impropérios monólogos, degenerescência solitária na cidade cheia de amigos e de companhias, vem preencher a minha solidão disse eu e ela disse não vais conseguir o que queres não vais conseguir o que queres TU não vais conseguir o que queres, EU, não sei o que ela queria dizer com isso porque DESLIGOU.
EU, nada de jeito, nada de jeito, nada de especial, pobre e triste solitário, SÓ apenas sendo só e eternamente EU, condenado ao mesmo de sempre, ao falhanço e ao fim da boa vontade, não sei amar porque, talvez, nunca o soube definir, eu sei, faltou tirar o último coelho da cartola.
Vi-a parada, encostada junto ao parque de estacionamento em obras, mini saia preta, camisa vermelha botas olhos verdes peito pequeno tremendo de frio entrando e saindo dos carros que passavam e paravam e paravam e passavam...
EU perguntei quanto era ELA disse vinte euros e EU perguntei o quê e ELA disse broche e foder e EU perguntei onde e ELA disse no parque de estacionamento e EU disse está bem.
Ela disse que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir o que queria ela disse que eu não ia conseguir.
EU disse que era a primeira vez que fazia aquilo e não sabia como funcionava e ELA disse primeiro pagas e EU paguei e disse que se calhar não era boa ideia e ELA disse já que estás aqui experimentas EU disse está bem Ela deu um gole de coca-cola foi um cliente que me deu e EU disse está bem.
Conseguir o quê, mas ela desligou o telefone e eu fiquei pior do que ainda estava.
ELA meteu-o na boca metendo o preservativo com ela e EU pus-lhe a mão no rabo e ELA disse a tua mão está fria e eu tirei-a ELA meteu-o na boca e EU voltei a meter-lhe a mão no rabo e ela insistiu a tua mão está fria.
O jogo de perguntas e respostas grita pelos seus jogadores, as voltas e voltas da cabra cega e os cornos contra o tempo Cronos, mitologia falhada de fim da estação em saldos.
EU disse não vou conseguir estou muito nervoso e ELA ficou a olhar EU disse vamos tentar de outra forma e ELA disse que outra forma EU disse tu excitas-me e EU bato uma e ELA disse está bem encolhendo os ombros e EU disse geme.
O que é que isso interessa? Um momento qualquer numa noite atrás que me lembra esta noite que daqui a uns tempos será apenas mais uma noite atrás não interessa nada.
EU fechei os dedos à volta do meu ELA gemia abri-lhe as pernas meti os meus dedos entre as suas pernas enterrando ELA gemeu mais alto EU arfava ELA apertou-me os testículos com força EU pus-lhe as mamas de fora beliscando com força.
Nada. Do nada ao nada. Nada pode vir do nada. Ex nihilo, nihil. Nada.
EU gemia arfando um carro arrancou a poucos metros do meu ELA voltou a metê-lo dentro da boca EU disse-lhe para ELA se virar e ELA perguntou para quê mas virou-se na mesma a cara contra o vidro do outro lado do meu.
Não, não sei o quê nem o que era, mas eu não consegui o que queria.
Ejaculei arfando contra o preservativo cor de rosa e ELA estendeu-me um pedaço de papel higiénico para me limpar dizendo ufa até que enfim e saiu do carro dizendo bem lá vou EU para o frio outra vez lá vou EU para o frio outra vez lá vou EU para o frio outra vez.
Lá vou EU para o frio outra vez.
Lá vou EU para o frio.
Outra vez”.


RMM (amor de mal ditos-proj.)

quarta-feira, novembro 24, 2004

Frase do dia: “Apesar das palavras péssimas, a luz, o excesso, uma ou outra ruga aqui e ali marcando a imagem trágica dos lábios no cigarro, as sombras do ontem e de tudo o que já não se sabe, nem se pode, dizer não te esqueças: Eu ainda estou aqui para ti!”

O DESEJO DE PINTAR

Desgraçado o homem, talvez, mas feliz o artista a quem o desejo dilacera.
Anseio por pintar aquela que apareceu tão raramente e que tão depressa fugiu, como uma bela coisa que com pena deixa para trás o viajante a mergulhar na noite. Quanto tempo vai já desde que ela desapareceu!
Ela é bonita, e mais que bonita; ela é surpreendente. Nela o negro prevalece; e tudo o que ela inspira é nocturno e profundo. Os seus olhos são dois antros onde cintila vagamente o mistério, e o seu olhar ilumina como o relâmpago; é uma explosão nas trevas.
Compará-la-ia a um sol negro, se pudéssemos conceber um astro negro derramando luz e felicidade. Mas ela faz pensar mais espontaneamente na lua, que sem dúvida a marcou com a sua temível influência; não a lua branca dos ídolos, que se parece com uma fria recém-casada, mas a lua sinistra e inebriante, suspensa lá no fundo duma noite tempestuosa e transtornada pelas nuvens que correm; não a lua sossegada e discreta que visita o sono dos homens puros, mas a lua arrancada do céu, vencida e revoltada, que as Feiticeiras tessálicas constrangem duramente a dançar sobre a erva terrificada!
Na sua pequena fronte habitam a vontade tenaz e o amor da presa. No entanto, por baixo dessa face inquietante, onde narinas móveis aspiram o desconhecido e o impossível, estoira, com uma graça inexprimível, o riso duma grande boca, vermelha e branca, e deliciosa, que faz sonhar com o milagre duma soberba flor, brotada num terreno vulcânico.
Há mulheres que inspiram o desejo de vencer ou de as gozar; mas esta provoca o desejo de se morrer lentamente sob o seu olhar.

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris

terça-feira, novembro 23, 2004


Frase do dia: “Agarra-te ao mar se este for mais sólido que a tábua”.


“Para sobreviver à vergonha que me causara o facto de me ter renegado, esmerava-me a levar as coisas com filosofia. Tudo não passa de uma questão de conveniência. Os homens aprenderam a comprazer-se com aquilo que lhes convém. A verdade, a mentira, o rancor, o perdão resultam mais de uma propensão conjuntural que de uma convicção; é o que se chama convenção, por vezes justificação e normalmente desculpa. O fraco perdoa aquilo que não pode corrigir. O tirano executa em vez de indultar; disso depende a sua longevidade. Com o tempo, a teimosia corrói o entendimento. Mesmo a renúncia é uma ideia preconcebida. Cada um procura rentabilizar as suas motivações de uma ou de outra forma. O que importa é que estejamos nós bem, em vez de estarmos bem com os nossos semelhantes. Foi precisamente para preservar este equilíbrio que se inventaram as grandes palavras, os valores, as conveniências. Na minha vida não encontrei grandeza, a verdadeira, senão no gravíssimo. A grandeza, para mim, tem uma ressonância trágica, se não falaciosa, pois tudo é drama ou hipocrisia. O mundo assenta no primeiro e sobrevive graças à segunda. Amar é drama quando não se é correspondido ou hipocrisia quando se pretende que nos entreguemos por inteiro. A arrogância é hipocrisia quando não passa de fachada e drama quando não tem cura. O galo bem pode levantar a grimpa e bater as asas que invejará sempre o corvo quando este levanta voo. Odiar é drama quando se legitima e hipocrisia quando se rejeita no outro a pouca estima que se tem por nós. Dos dois males, venha o diabo e escolha. Eu escolhi a hipocrisia; e de todas as hipocrisias, a que me parece menos abjecta: olhar-me ao espelho sem corar. O espelho é complacente se nos prestarmos às suas facécias”.

Yasmina Khadra, O Escritor

sábado, novembro 20, 2004

Frase do dia: "A mudança... se sabes que é necessária, por que é que (ainda) a travas?"

"- Tudo bem? Estás constipado?
A coordenadora demonstra, matinalmente, um interesse em mim e na minha saúde e eu digo que sim que estou meio constipado e ela diz que se eu estiver muito mal posso ir para casa colocando a mão dela na minha. As unhas grandes de verniz suaves frias fazem-me espirrar e ela diz santinho e eu agradeço pateticamente a patetice absurda de uma manhã esdrúxula e em directa de uma noite inexistente.
Adentro a sala, o computador, a Xana ainda não chegou. Entra o Jorge, o meu rival neste pequeno universo fechado. Sorri-me de uma noite bem dormida e bem passada nos cobertores psicológicos de ursinhos de pelúcia felizes e contentes e contentes e felizes.
- Então, foi boa essa noite?- pergunta, companheiro compincha, um camarada e ele é um gajo porreiro e ele é um gajo porreiro.
- Sim.- respondo.
- A sério? Estás com um ar cansado...
Quatro anos no teu curso de psicologia para veres isto e mais dois de mestrado do mesmo para veres a mesma coisa que eu estou cansado ou, então, apenas quis pintar os olhos de preto e preto com rímel exagerado e preto como uma puta velha num bar chunga de trabalhadores a entrarem na reforma da construção civil e das usinas de desempregados sem emprego. Sim, cansado, grande coisa, e enjoado. Mas sabes que mais, meu amigo? Foi o cheiro, está cada vez pior. E, não, não me fales em culpa e em arrependimento que ainda não cheguei a esse ponto. Sempre foi a dor, sabes? A dor... para vocês, supostamente, normais, a dor é apenas um estado passageiro mas para mim e para os como eu... não é, não passa com falinhas mansas, não se amansa na minha fala bebe-se às golfadas como o silêncio dos que se afogam no mar da incompreensão e dos inadaptados. Toda a minha vida tentei vestir uma capa de normalidade, trajando a máscara de uma vida aparentemente calma e regrada mas falhei. Sinto que se fracturou algures e não sei quando...
- É engraçado como nós já trabalhamos aqui há algum tempo e quase que não sabemos nada um do outro.- diz o Jorge. Eu, sem grande vontade, aceno com a cabeça naquilo que ele supõe ser uma afirmação.
- Por exemplo, eu tenho namorada, e tu?
- Não.
- Olha, a Xana já namora com o mesmo tipo há uns quatro anos. Ele agora foi para África em trabalho humanitário, está numa ONG escandinava, mas deve voltar em breve. Costumamos sair juntos nós quatro. Eles, eu e a minha miúda, a Filipa.
- Pois.
- Admiro a Xana, é uma miúda incrível...- olha-me nos olhos tentando ler nas entrelinhas.
- Pois.
- Há que investir nas relações, construir laços de afecto mais sólidos, mais profundos. O namoro serve mesmo para isso. Para consolidar esses mesmos laços.
- Pois.
- Por que é que não namoras?- pergunta sorrindo, brincalhão, camarada...
- É naquela.- respondo encolhendo os ombros.
- Naquela o quê?- pergunta, sem perceber.
- Naquela.
Tenho frio, estou constipado, não dormi, estou cansado, matei um homem e agora o cheiro empesta-me a casa toda, a casa que nem sequer é minha e que só consigo manter se estiver a trabalhar o que vai deixar de acontecer dentro de uns quantos de meses sem perspectiva alguma e ele pergunta-me por que é que não namoro.
- Houve alguém em tempos.- digo para não ficar muito mal.
- Ah!- ele exclama fingidamente interessado.
- E depois não houve ninguém.
- Ah sim?!- ele franze o sobrolho.
- E depois surgiu outra pessoa, mas foi muito breve e já se foi embora.
- Bem, depois havemos de falar sobre isso.
A coordenadora acaba de entrar na sala. O Jorge salta para a secretária esgaravatando uns gatafunhos nuns papéis.
- A Xana ainda não chegou?- pergunta a coordenadora com modos bruscos e, nisto, como se fosse numa peça de teatro, é a própria Xana que chega e que entra em cena.
- Estava à tua espera. Vem ao meu gabinete.- seca, frígida, estátua.
A coordenadora sai. A Xana lança um breve olhar ao Jorge que encolhe os ombros. A mim nem me vê.
Sinto a boca amarga do meu espirro a sujar o tecto da sala fria".
RMM

quarta-feira, novembro 17, 2004

Frase do dia: "Pergunta, então, à tua simplicidade e vê se ela agora me diz que, desta vez, as coisas já não são tão simples".

"O meu pai. A minha mãe telefonou-me a dizer que ele ainda não apareceu. Que ele ainda não apareceu em casa e, de todas as formas, sinto que se não aparecer nunca mais... é como se me fosse, literalmente, igual. Sempre fomos uma incógnita um para o outro e agora que a minha vida se encarrega de virar a página dos doces vinte anos sei, claramente, que ambos falhámos. Posso dirigir o meu pensamento de encontro aos dias do passado que, com todas as lógicas da falta das mesmas, nada se poderá alguma vez alterar. O tempo estático avançou construindo os abismos, alimentando os demónios, construindo as jaulas onde os velhos leões se deixaram morrer pouco a pouco.
Estou eu a pensar nisso e a olhá-los. Aos dois. Pai e filho. Ambos os dois juntos. Acendo o segundo cigarro seguido e virão pelo menos mais quatro antes do almoço. Manhã fria apesar do sol, bairro social, forma educada de nos referirmos a um gueto. Periferia desenquadrada do resto e sem espaço para crescerem flores, o lixo amontoa-se por todos os cantos atraindo as moscas os cães desconfiados sarnentos os gatos trágicos as crianças sujas.
Estou a olhar para os dois e a pensar no meu pai e em mim. Ali, a criança, como se pudesse ser eu, numa réplica do tempo da infância de qualquer coisa que ficou irremediavelmente para trás. Estou a olhar para ambos, mascarando a minha certeza em relação ao incerto entre anéis de fumo e de fumo.
Reconhecem-me.
- Bom dia doutor! Tá frio!
- Sim, sr. José. Está mesmo frio!- respondo sem vontade de mexer a língua
Manhã fria, os ossos dos dedos de encontro aos dedos dos ossos. A criança tímida ao lado.
- É o seu filho?
Sim, é o filho, mas tu pai onde estás?
- Sim, é o meu mais novo o Carlinhos, ele tava para ir à tal colónia que vocês tão a organizar mas já não quer pois também vão ciganos.
- Ó Carlinhos! Não faças uma coisa destas! Nem sabes o que vais perder! Vais-te divertir bastante, tem lá piscina, parece que também se pode ir à praia, se estiver bom tempo...
- O problema são os ciganos!- replica o pai- Batem nos outros e só cá estão para passar droga doutor este bairro tá mal afamado e a culpa é deles dão má fama doutor a polícia faz cá falta pelo menos quatro patrulhas diárias deviam era metê-los noutro bairro.
- Bem, sr. José, essa é uma situação que...
- Os putos são maus, é sangue ruim ainda piores que os pretos. Se vão ciganos o Carlinhos não vai!- arremete o Pai sob o olhar encolhido do filho.
- Mas sr. José, até é bastante raro quando vai algum miúdo cigano. Os pais, simplesmente, não os deixam ir. Sabe como eles são em relação às crianças, deixam-nas andar a correr por aí mas, de resto, são super protectores. Ficam sempre desconfiados e é difícil contar com algum deles para as nossas actividades. Além do mais, sr. José, estamos a falar de miúdos de 9 e de 10 anos...
- Pois pois doutor mas se forem ciganos o Carlinhos não vai!!
O sr. José olha para o lado e vê o sr. Monteiro, cognome o Rambo, a aproximar-se-
- Boa tarde doutor! Olá ó José!!- arremete o sr. Monteiro, cognome o Rambo.
- Boa tarde amigo Monteiro! A festa estava boa ontem em sua casa. Aquilo foi a noite toda!- responde o sr. José.
- Atão não tava!- concorda o sr. Monteiro, cognome o Rambo.- Tava cá toda a família, vieram de Viseu, Mangualde. Atão eu disse para você lá ir ó homem! É festa cigana!
- Pois disse.- responde o sr. José entredentes.- Mas eu tinha que acordar cedo para trabalhar.
- Por falar em trabalho, tá na hora de ir montar a tenda. Agora tamos no descampado da fábrica velha, correram com a gente da rua do comércio. Bem, cumprimentos ó doutor.
O sr. Monteiro, cognome o Rambo, afasta-se em direcção à carripana a cair aos pedaços. A mulher já ao lado, os filhos atrás a faltarem a mais um dia de escola.
- Puta que te pariu!- vocifera o sr. José em surdina. – Não preguei olho a noite toda com o barulho pareciam que estavam a matar alguém raça maldita deviam era proteger os portugueses, mas esse, coitado, nem é dos piores ainda tem aquela história da filha, a Antonieta.
- Que história é essa?- pergunto curioso.
- Atão não sabe doutor!? Não se fala mais nada no bairro todo. Parece que tá grávida.
- A sério?
- Sim, a minha mulher ouviu os gritos numa destas tardes, tá mesmo prenha e agora nem a deixam sair de casa, vá lá que é um pedação de mulher com umas coxas, mas tá grávida e nem tá casada. Tem 17 anos e não tá casada! Para eles isso é muito mau...
- Mas, e o pai da criança, o namorado, agora as famílias vão ter mesmo de os casar...
- Não é bem assim doutor e prepare-se que isto tá a ficar mesmo mal e eu não me sinto seguro aqui no bairro vai acabar num banho de sangue. É que parece que o moço que ninguém quer dizer quem é ele é como nós.
- Como nós?
- Branco."
RMM

segunda-feira, novembro 08, 2004

Frase do dia: "Por mais que a evites, hoje, a Luz quer-te!"

"Chamam-nos para a reunião semanal na sala da coordenadora. Sentamo-nos à volta da mesa rectangular, a coordenadora a distribuir as actas uma por uma aos demais técnicos. Sinto um certo silêncio disfarçado pelo barulho das folhas atiradas sobre a mesa. Faço o meu esquema no meu caderno preto, como se apontasse as minhas neuroses absolutistas de controle. Não é nada de especial, no fundo. Apenas uma maneira de me antecipar a sabe-se lá o quê. Como eu pensava repete-se: as duas assistentes sociais, a Magda e a Helena, sentam-se as duas, outra vez, juntas. Parecem presas ao seu próprio mundo, comentam o novo vestido florido da Magda, a Helena anuncia que, estas férias, vai até à Turquia com o marido e a filha de nove meses. Estão as duas do lado direito da coordenadora, também ela assistente social, de resto, foram todas colegas na mesma faculdade e consistem o núcleo duro cá do Centro, as únicas que pertencem ao quadro da instituição. Em frente a mim, do lado oposto da mesa, está o Jorge, o psicólogo, ar animado, o único a dar ideias aqui dentro, o único com alguma ambição. Senta-se ao lado da outra psicóloga, a Xana. Os dois falam animadamente, fazendo o meu estômago remoer numa espécie ciumenta de raiva disfarçada de silêncio. Estão ambos do lado oposto da mesa, ao meu lado está apenas a cadeira vazia do Alberto. Aponto sempre a ordem e o lugar em que cada pessoa se senta e comparo com as anotações da semana anterior. Sei porque o faço. É para traçar padrões, descortinar alianças, para saber quem interfere com quem. Não é que seja algo de outro mundo, ou que me dê muito trabalho, não é muita gente. Devem estar para chegar uns dois ou três estagiários, pelo menos é o que se espera.
Principalmente agora que a ausência do Alberto começa a ter algum peso.
Começa a ordem dos trabalhos. A Magda e a Helena começam a falar das pessoas que foram, esta semana, atendidas e o que se decidiu que cada uma deveria receber. O sr. Monteiro recebeu subsídio pecuniário no valor de... , géneros alimentares, arroz, farinha, leite em pó para a Augusta e filhos... suspendeu-se o subsídio para o Tó Mané e família suspeitos de tráfico de droga... miúdo retirado da tutela dos pais e entregue à guarida... ciganos querem criar associação no bairro... as pessoas entreolham-se.
- Só se for uma associação de traficantes!- atira a Magda.
Todos encolhem os ombros sorrindo, a coordenadora abana a cabeça num gesto cúmplice, mantenho-me neutro até à flor de sentir que não vale muito a pena. Passei a sentir que não vale muito a pena ter uma pena que valha.
Dar ideias, o Jorge sorri, fazer uma colónia intergeracional de avós e netos, sim, é uma ideia a considerar. Fazer um percurso semanal pelo bairro, numa de se conhecer a realidade social, também, sim, é uma boa ideia. O Jorge sorri, a Xana incentiva-o, não digo nem me apetece dizer nada ou coisa alguma. Criar a sala de formação... como é que isso vai? Pois.
É para mim.
- Bem...- respondo, com os olhos fixos da coordenadora sobre os meus, cinzentos esverdeados.- A sala já está criada, só falta que venham entregar o data show e o retroprojector. Afinal esse material vai ficar muito em conta, ainda vai sobrar dinheiro.
- Vai sobrar dinheiro!!- a coordenadora espanta-se.- Temos então de o gastar! A avaliação do projecto deve estar para breve e se queremos que o voltem a financiar no próximo ano temos de gastar o dinheiro todo. É isso ou da próxima vez não voltamos a receber tanto!
Fica acordado que o dinheiro restante vai ser destinado à compra de borrachas e lápis e afiadeiras. Não vale a pena referir que tudo isso já existe de sobra, é preciso ser gasto e não há outra lógica possível. Olho pela janela, os putos Edson e Júlio, ambos ciganos, espreitam pelo vidro sujo, o primeiro encavalitado num pónei. Fazem caretas, a Xana levanta-se para fechar a persiana. Dobra-se quando o faz revelando uma tanguinha vermelha a emergir por cima das calças de ganga azuis, cintura baixa, sexy, sensual, sexo. Começo a salivar de uma maneira muito pouco politicamente correcta, emitindo um barulho gutural. Tento disfarçar, não que ache que alguém reparou... pois, seria bom demais, o Jorge está a olhar para mim, ar cínico, uma espécie de rival num universo fechado e delimitado. Ela senta-se. A coordenadora recomeça a falar.
- Estes miúdos estão cada vez mais insuportáveis, agora até de burro já andam!!
- E os da Marcelina que andam de moto 4?? E o marido tem um carro novo!!! A receberem subsídio do Estado!!- atira a Magda.
- Essa família é tua!! Tens que lhes cortar o subsídio!!!- replica a Helena.
- E eu sou louca!!!- defende-se a Magda.- Aqui ninguém me paga para levar um tiro!
- É preciso ter mão nisto!!- ordena a coordenadora.
- Não era um burro, era um pónei!- digo eu.
Saímos da sala em silêncio".
RMM

sexta-feira, novembro 05, 2004


Frase do dia: “A intensidade do som nem sempre é equivalente à intensidade do silêncio”.

Notas breves da maldade

Do Mau

Benfica perde com o Estugarda
Ainda não estamos a ponto de dizer que a esperança é a última a morrer mas... morre.

Do Muito Mau

O Elogio da Estupidez

Como seria previsto GW Bush venceu as eleições presidenciais americanas, sem grande surpresa para quem quer que seja, principalmente para os seus oponentes. Mas a “virtude” democrática é mesmo esta: quanto mais estúpido, mais populista e mais prepotente melhor. A lógica americana não está assente num único homem ou presidente de toda a imensa parvónia. A estratégia de dominação yankee é baseada no simples modelo de superioridade intelectual em relação ao Velho Mundo (Europa) e na superioridade moral, racial e de valores em relação ao resto do mundo- as periferias condenadas à satelização progressiva.
Convertam-se ao que nós somos ou serão eliminados! Pois, o caixote de lixo da história já fede ao cheiro dos cadáveres de amanhã.
O modelo americano consome-se a si mesmo, na maior parte dos casos é incapaz de encontrar oposição ao que quer que seja. Bom exemplo disso é o filme do Michael Moore: nem uma só referência ao lobby judeu, bem mais do que as relações com a Arábia Saudita, mas, enfim, parece que nunca se pode pedir muito mais.
Realmente, assim não.


Do Péssimo

A morte iminente do líder palestiniano Yasser Arafat...
Não! A resistência não morrerá por isso.
Há quem critique que o Arafat, ao exemplo de muitos, é apenas um guerreiro e que nunca poderia ser um pacifista. Há uma certa lógica entre aquilo que as pessoas tomam como sendo uma contradição. As pessoas habituaram-se à intelectualidade de sarjeta, querem os seus supostos pseudo heróis limpos, num gabinete ou em viagem de aperto de mãos a este e aquele, os tais do gabinete, os tais que têm as mãos limpas e que nunca as sujam... Pois. Na maior parte dos casos apenas estão limpas porque há outros que as sujam por eles.
Mas não há contradição alguma, a opressão de outros justifica o sangue de muitos. O mal dessas pessoas é não se perguntarem a elas próprias como é que um carniceiro (Sharon) se pode arrogar a ser o que quer que seja.

terça-feira, novembro 02, 2004

Frase do dia: "Aproveita, o lugar está vago outra vez".

"Lembro-me bem quando Ela partiu. Porque quando ela partiu levou com ela os destroços do meu coração. Partiu e consigo levou os fragmentos, os estilhaços, as granadas e tudo aquilo que ainda fervilhava no meu peito, tudo aquilo que já não encontro no meu peito nesta altura. Há sempre uma Mulher na vida de qualquer Homem que seja. Espero que não tenha sido ela, que não fosse, ou que nunca fosse, como se alguma vez pudesse ter sido, ou será que nunca foi, mas nunca ela, não mais ela nunca mais, nunca mais ela. Porque ela partiu.
Nunca mais me esquecerei quando o fez, o seu passo apressado carregando a sua estatura média, o peito pequeno, o cabelo de uma cor qualquer de um tom escuro de castanha escura escurecida. Partiu. Num dia assim. Com 24 horas para se preencherem com qualquer coisa que se faça, embora sabendo que não é preciso fazer mesmo e mesmo nada, que todas essas horas se esgotam e passam. Como se alguma vez o tempo parasse, sabendo que o tempo nunca pára. Ela partiu. Carregando o seu pequeno corpo, corpo pequeno, partiu feliz e ansiosa adentrando o aeroporto, voando para tão e tão longe daqui. Ainda me lembro de ela acenar ao longe, sem o inevitável lenço que se espera que se acene- visto ela estar a embarcar num avião, visto ir para fora do país, visto estar como ela estava... a partir...
Mas não, nunca podia ser ela, a mulher da minha vida... como se alguma vez pudesse existir uma tal parvoíce que seja...
Porque há aquelas que esperamos que cheguem, aquelas de quem se espera que tragam a nós mesmos de volta, aquelas que nunca partem, que nunca nos deixam, que estão sempre a chegar. E ela partiu e nunca mais voltou. E ela nunca mais voltou. Porque nunca sequer chegou algum dia a ficar.
Ainda me lembro quando o fez, num dia igual a este, com o vento e os espanta-espíritos em namoro copular, com as nuvens carregadas dispersas, do pôr do sol de um céu vermelho, trágica cor verbal, violeta e roxa pluma das aves, o silêncio de quem tem sempre tudo a dizer, o barulho seco dos carros ao longe, ela partiu, o seu passo decidido, o sorriso nervoso de ansiedade e vontade de nunca mais voltar, ela partiu. O seu passo decidido, ela partiu. As vértebras pesadas por toda a incompreensão, ela partiu. O seu peito pequeno, ela partiu. Os lábios como morangos, os dedos que acenavam como garras na minha garganta, ela partiu. A felicidade massacrando a capa de todo o meu amor, de todo o meu ódio e impotência, ela partiu. Para nunca mais voltar, ela partiu. Para partir para sempre, ela partiu. Acenando a quem quer que fosse, ela partiu. Ainda me lembro bem quando o fez. Ali no aeroporto. Ainda me lembro bem demais. Acenando aos amigos, ainda me lembro bem. Acenando aos que amava, ainda me lembro bem. Acenando às mães e pais e tias e sobrinhos, ainda me lembro bem. Acenando às ruínas de um mundo que morre, como eu me lembro tão bem. Como eu me lembro tão bem. Ai como eu me lembro.
Como eu me lembro bem... porque lá não estava".
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AINDA NÃO ME DEI AO TRABALHO DE ORDENAR ALFABETICAMENTE (AZAR!)