sábado, outubro 07, 2006


Frase: “Depois eu penso nisso agora”.


«Ainda muito novos, os dois. Éramos ainda muito novos. Os dois no ringue de boxe improvisado no pátio da casa velha. Nessa altura ainda os meus avós eram vivos, nessa altura África não era só uma palavra antiga num velho álbum de recordações. Eu e o meu primo, no pátio da casa velha, no ringue de boxe, a minha cadela a rosnar e a atirar-se contra as grades, a raiva e a insanidade de um animal numa jaula. Os dentes caninos, as mãos sobre a infância, a inocência dos seis ou sete anos. O pátio da casa velha, um mundo, um coliseu, um ringue de boxe, uma arena. Eu e o meu primo, os dois guerreiros, os dois adversários, os dois gladiadores. Uma mão nua, a outra com uma luva, o combate de iguais sob o sol da tarde. Eu com a luva direita, ele com a esquerda. Eu era muito mais alto, mais forte, mais escuro, mais ágil. Ele era mais pequeno, pálido, franzino… Eu saltava na minha loucura, na minha arrogância, selvajaria e rapidez na distribuição dos socos. Os outros primos gritavam e incentivavam. Eu vindo de África, ele do Porto, no pátio da casa velha, na Coimbra dos despojos e dos anos e anos depois, tão depois, tão igual e tão diferente, antes do reencontro com o eterno e com o para sempre. Antes e depois e para sempre, amizade forjada a sangue e na cumplicidade dos copos de cerveja, das bandas rock, das suas traições encobertas às namoradas, do meu apagar a meio da casa dos vinte, da sua ascensão meteórica ainda antes dos 30 anos de idade. O desprezo pelos fracos, quando a fraqueza não nos calha a nós, no nunca ceder, no escapar ileso e no avançar. O jogo de cintura, o espelho, o escorpião, o soba do rio Kuanza, eu distribuía murros, esquerda, direita e direita, esquerda, os gritos dos outros primos nos meus ouvidos, o pátio da casa velha, o coliseu, a arena, os pneus de um carro sem travões. Ele encolhia-se, desviava-se, encaixava os murros. Eu atacava, preso às minhas certezas ganha o mais forte, e o mais forte era eu. Eu apenas e apenas eu. O postulado, o paradigma, o anjo definitivo na distribuição da dor. O mais forte era eu. Até que primeiro um, depois outro e… não tenho bem a certeza, mas penso que um terceiro murro me fez vacilar. Não caí, é certo, mas a verdade é que uma mão adulta fez parar aquele combate, recolhendo cada um ao seu canto. E ainda bem… Ali. No pátio da casa velha. No ringue improvisado. Sujo de suor, ferido no orgulho, asas encolhidas, o mundo naquela derrota. De todas as formas… apenas uma. Apenas uma lição e das mais básicas. O maior erro é subestimar o outro. Quem pensas tu que é o fraco? Não precisei de mais de um combate para isso. No meio do pátio da casa velha, nesses dias e nesses anos, nesses anos e nesses dias. Em todo o tempo que leva uma mão a esmurrar um rosto. Aprendi a lição dessa vez. Por que é que não a aprendeste também?!»

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AINDA NÃO ME DEI AO TRABALHO DE ORDENAR ALFABETICAMENTE (AZAR!)