sexta-feira, janeiro 01, 2010

KATACUMBA 4

- Se algo caracterizava a cena rock de Coimbra dos anos 90, embora hoje em dia, não creio que seja muito diferente, é que era, maioritariamente, constituída por pessoas de Coimbra. Pode parecer meio xenófobo mas esse era mesmo o princípio. O pessoal das bandas, tivesse a idade que tivesse, era quase todo da cidade. Vinham do mesmo tronco comum…
- Mas isso não é assim em qualquer sítio?
- Talvez. Mas numa cidade em que grande parte da população juvenil é universitária, a sua maioria oriunda de outras cidades, embora cada vez mais circunscrita à zona centro, este facto não deixa de ter uma grande relevância. Ao contrário do que seria de supor não havia grande mistura, nem uma grande participação da população universitária, a não ser quando os concertos eram realizados na Cave das Químicas e… mesmo assim, muito circunscrita ao pessoal que frequentava os organismos da AAC, pessoal da RUC, etc. Sendo assim, eram raras as pessoas que não eram de Coimbra a terem uma participação activa na cena rock. Havia uma grande ligação aos liceus, José Falcão, Brotero, Dona Maria. Os liceus, apesar de muitos de nós já sermos universitários, eram uma estranha fonte de recrutamento de pessoal para os movimentos, rockabillys, freaks no geral. Não que não houvesse pessoal de fora que tocasse em bandas, mas…
- Pois. Percebo essa lógica. A Universidade, o peso da praxe, os jantares dos cursos, o Carnaval local, condiciona e limita a vivência de grande parte das pessoas. Mesmo de muitas que até teriam uma qualquer palavra a dizer. Acabam por se perder na manada, a pastar no meio dos outros.
- Nem mais. No entanto esta ligação a Coimbra era (e é) mais pungente do que pode parecer à primeira vista. Só depois do fim de Katacumba é que me lembro de começar a ter amigos que não fossem de Coimbra, não que fizesse alguma coisa para isso não acontecer, apenas não calhava, não era comum. Nesses tempos, apesar de falar com os colegas da faculdade, de conhecer pessoal que vinha de fora, a verdade é que quase todos os amigos, todas as pessoas próximas, eram deste meio, fossem de que classe social fossem, fizessem ou não fizessem nada, estudassem, trabalhassem, ou estivessem apenas na marginalidade. De todas as formas… este era o princípio primeiro, a origem das pessoas. Logo, embora possa não parecer relevante numa primeira leitura, permitiu o aparecimento, particularmente no fim dos anos 90 e nos anos zero, de bandas conimbricenses, ou com pessoal de Coimbra, com um forte estatuto nacional e internacional – Belle Chase Hotel, Legendary Tiger Man, Wraygunn, Bunnyranch, D30, Sean Riley and the Slowriders, Parkinsons, Ruby Ann, etc.
- Mais uma vez, impulsionadas pelo pessoal dos Tédio Boys.
- Sim, também. Mas não só. Mas o princípio é o mesmo: se as pessoas não fossem daqui, ou melhor, se por aqui não se mantivessem, isso nunca poderia ter acontecido. As mesmas pessoas, os mesmos bares, os mesmos concertos, as mesmas bandas. Esse sempre foi o princípio.
- E mais? Quais eram as outras particularidades?
- Bem, estamos a falar dos anos 90. E se rejeitarmos (como o devemos) a perspectiva paternalista de classificarmos a atitude desses anos como cenas de putos, já que estamos a meio da casa dos 30:), outra das características era uma certa tendência para agirmos como uma gangue. As bandas eram uma espécie de espaço fechado, embora cada uma com o seu cerco de influências à volta. Isso era mais visível nos Tédios Boys, mas também com os Katacumba isso acontecia. De todas as formas, a cena das bandas era marcada pela superioridade moral do rock alternativo, embora também ele preconceituoso. O pessoal do rock dominava, organizava concertos, demonstrava outra dinâmica. Bandas que não pertencessem, ou que não fossem aparentadas, com esse movimento tinham muito poucas hipóteses. A verdade é que o rock do meio dos anos 90 era mais violento, ao contrário do que acontecera no fim dos 80, início dos 90, com bandas do género Amantes de Maria, Primus Inter Pares ou os Los e o Mito. Os Cure, os Smiths já tinham sido apagados pelos Nirvana, Stone Temple Pilots… Bandas mais pesadas, muitas entretanto extintas, estavam a ser redescobertas, Dead Kennedys, DRI, SOD. O rock pulava em todos os espaços de culto, o States principalmente, Gun Club, Body Count… O paradigma já não se adaptava a estilos musicais mais pop. Não que não houvesse bandas desse género, também elas de cá, basta pensar na Inês Santos que ganhou o Chuva de Estrelas, mas as suas hipóteses de se afirmarem neste universo eram nulas e não tinham capacidades para criarem o seu próprio movimento. Bairro de Celas, Cave das Químicas, isso estava fora de questão para eles, quando muito… tinham de se limitar a tocar no Dom Dinis, onde a maior parte do público era de fora e não estava lá pela música. Isso marcou esses tempos.
- Mas essa cena das gangues… das bandas serem algo de parecido. Como é que funcionava?

Continua

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4 Comments:

Anonymous PB said...

O interessante dessa cena toda de que falas é que havia gente a tentar fazer coisas, a tentar expressar-se de uma forma artística. Se calhar, nessa altura havia mais do que há agora. A qualidade da maioria das bandas podia ser pouca, mas havia o germinar de qualquer coisa que depois deu frutos, como referes.
Eram também, claro, movimentos de liceu. Eram pessoas dos liceus de Celas e da Solum, as zonas mais urbanas da cidade, que estavam por detrás desses grupos.
Havia outros liceus, como o meu (o D. Duarte) que eram praticamente marginalizados. Ou seja, quando o pessoal se tentava aproximar desses movimentos sentia que havia uma certa discriminação. Era quase como se não fôssemos da cidade (para mim, na altura, isso pouco importava), embora também frequentássemos os antros do costume (o states, os bares da praça). Mas certamente com menos regularidade, muito do pessoal com quem eu me dava nessa altura nem era bem de Coimbra, era das frequesias limítrofes (S. Martinho, etc.)
De qualquer dos modos, o que interessa dizer é que havia gente a tentar fazer coisas. Foi nessa altura que eu comecei a escrever poesia. Era muito má, como era mau o som dessas bandas. Mas, se uma pessoa não tentar e falhar muitas vezes, nunca vai chegar a lado nenhum.
Por isso, viva o experimentalismo de Coimbra. Que continue, porque é uma das características da cidade. Coimbra tem uma dimensão adequada para a germinação artística, por causa do seu tamanho e da universidade. A questão é que eu não vejo que os artistas se fixem em Coimbra (mesmo o crónico Paulo Furtado, depois de ter tentado organizar um festival de blues na cidade, já se refugiou em Lisboa, ao que sei), nem que a cena artística da cidade seja constante ou esteja em crescendo.
Mesmo nisso, Coimbra está a perder, ao que me parece.
Um abraço do Oriente!
Paulo Barbosa

7:58 da manhã  
Blogger Black Rider said...

É verdade, a discriminação era uma das coisas que mais marcava esses movimentos. Ou seja, embora se dissessem alternativos, ou que eram discriminados pela grande turba, sem dúvida que (também eles) discriminavam muitas vezes e agiam de uma forma elitista - não enxergando para longe do provincianismo pedante, tão característico da nossa cidade:)Sem dúvida que era um movimento dos liceus, ou seja, dos sítios onde as pessoas eram de Coimbra, não deixando este facto de também poder ser interpretado como outra forma de segregação.
De todas as formas, creio que esses movimentos deram os seus frutos, não apenas em relação ao pessoal que foi dos Tédio Boys. Muitas das grandes bandas daqui (com alguma projecção) integram pessoal que, de alguma forma, era próximo desse circuito ou tocava nessas bandas de terceira e quarta divisão. Falo da música, mas também em outras áreas isso acontece.
A cena é que a falta de apoio dessa época mantém-se até aos dias de hoje e... por manter-se igual, quer dizer que está pior.
Mas,não se pode negar, independentemente das pessoas cá ficarem (e apesar de tudo, ainda fica e regressa muita gente) que Coimbra tem uma capacidade de "criação de gente criativa" muito acima da média.
E fazer-se isto tudo numa cidade onde não existe nada, onde tudo tem de começar sempre do zero, não deixa de ser obra!

abraço!

2:45 da manhã  
Blogger Fata Morgana said...

Gostei imenso do post - tu sabes que andei neste mundo do rock, nos tempos em que tinha juízo -, mas gostei ainda mais de ver os comentários outra vez abertos. Poder falar contigo!

Um beijinho grande*

6:30 da tarde  
Blogger Black Rider said...

Olá!
Sim, é verdade, esses eram mesmo os tempos em que se "tinha juízo":)
De resto, achei piada fazer este esforço de memória, puxar os cordelinhos à mente para depois ver o que se faz com o novelo.

beijo!

1:06 da manhã  

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