segunda-feira, março 13, 2006


Frase: “O que lá vai lá vai, o que lá vai lá vem”.

LETRAS RETALHADAS


Frouxamente tornei a abrir os olhos.

Cesarin e o sacristão fumavam cada um seu charuto magro, com todas as esquisitices possíveis, e isso dava às suas pessoas um aspecto terrivelmente ridículo: a Senhora Sacristã, sentada na ponta da sua cadeira, com o peito cavo espetado para a frente, tendo por trás a roda do vestido amarelo que todo se embaloava até ao pescoço e que, ao desfolhar alegremente uma rosa, lhe fazia esvoaçar a única saia que trazia: um sorriso aterrador lhe entreabria os lábios e lhe punha a descoberto nas gengivas magras dois dentes negros, amarelados como a faiança de uma panela velha. Tu, Timotina, tu estavas linda, com o teu cordão branco, os olhos baixos e os caracóis submissos.

- É um jovem com futuro, o presente está a inaugurar-lhe o futuro, dizia o sacristão, lançando ao ar uma nuvem de fumo cinzento.

- Oh! O senhor Leonardo há-de dignificar o hábito que veste, dizia, com voz fanhosa a sacristã, cujos dois dentes se mostravam.

Eu corava, como qualquer rapaz de bem; reparei que as cadeiras se estavam a afastar de mim e que se bichanava a respeito da minha conduta.

Timotina não tirava os olhos dos meus sapatos; os dois dentes sujos eram uma ameaça… o sacristão ria-se, a escarnecer; eu continuava de cabeça baixa!...

- Lamartine morreu… – exclamou de súbito Timotina.

Ó querida Timotina, era por amor deste teu adorador, o teu pobre poeta Leonardo, que metias na conversa o nome de Lamartine; levantei então a cabeça, sentia que só o pensamento da poesia poderia fazer recriar a virgindade a todos estes profanos, sentia as minhas asas palpitar, e disse, radiante, com os olhos em Timotina:

- Belos florões ele tinha na coroa, o autor das Meditações Poéticas!

- Finou-se o cisne dos versos, continuou a sacristã.

- Sim, mas entoou o seu canto fúnebre, prossegui com entusiasmo.

- Mas, exclamou a sacrista, o sr. Leonardo é também poeta. A mãe dele mostrou-me no ano passado umas tentativas da sua musa…

Fingi-me corajoso:

- Oh, minha senhora, não trouxe comigo nem lira nem cítara, mas…

- Oh! Há-de-a trazer qualquer dia, a cítara…

- Mas entretanto, se não lhes parece menos próprio – e tirei do bolso um bocado de papel – vou ler-lhes alguns versos… Dedicados à Menina Timotina.

- Pois, pois, menino, recite. Muito bem. Vá lá para o fundo da sala…

Recuei… Timotina olhava-me para os sapatos; a sacristã fazia-se de Madona; os dois homens debruçavam-se um para o outro… Eu corei, tossi e disse entoando com unção:

Dorme entre sedas de torpor
Zéfiro, em cama de algodão;
Zéfiro, anho folgazão
Expira o mais suave odor…

Toda a assistência se desfez em riso: os senhores chegavam-se um para o outro, a murmurar trocadilhos grosseiros; o que era mesmo terrível era o aspecto da sacristã, que, olhos no céu, se fazia de mística e sorria entre aqueles dentes horrorosos. Timotina, Timotina rebentava a rir! Era para mim um golpe terrível ver Timotina a rir-se até mais não poder!...

- Um Zéfiro brando em cama de algodão, é mesmo uma coisa suave!... – fungava o padre Cesarin…

Julguei perceber qualquer coisa… A risada porém durou só uns segundos; tentaram todos ficar sérios, embora não contivessem um riso, de vez em quando…

- Continue, rapaz, continue! Está muito bem!

Quando Zéfiro vai voar
Da sua cama de algodão;
Quando uma flor o vem chamar
Seu doce odor faz impressão

Desta vez uma grande gargalhada sacudiu o meu auditório; Timotina olhou-me para os sapatos, eu cada vez estava mais cheio de calor, o olhar dela punha-me os pés a arder e a nadar em suor, enquanto eu pensava: Estes sapatos que trago já há um mês são uma dádiva do seu amor, este olhar que ela me lança aos pés é o testemunho do seu amor: adora-me!

Foi então que um cheiro leve pareceu que me vinha dos pés: Oh! Compreendi então as temerosas risadas da assembleia! Compreendi que, perdida nesta sociedade de maldade, Timotina Labinette, Timotina, jamais poderia dar livre curso à sua paixão. Compreendi também a necessidade que tinha de renunciar a este amor doloroso, em meu coração nascido, numa tarde de Maio, na cozinha dos Labinette, ao olhar as ancas torcidas desta virgem-com-a-escudela!

As quatro horas, hora de regressar, soavam no relógio da sala; desorientado, a arder de amor e louco de sofrimento, peguei no chapéu e pus-me a fugir, deitando ao chão uma cadeira; atravessei o corredor sem deixar de murmurar; amo Timotina; e sem me deter, dirigi-me para o seminário.

As abas largas da minha veste preta esvoaçavam ao vento, atrás de mim, como se fossem duas aves agoirentas.

Jean-Arthur Rimbaud, um coração sob a sotaina

4 Comments:

Blogger EyeOfHorus said...

Por vezes pergunto-me se todas as voltas que damos na nossa exist~encia, pretendem levar-nos de volta a um qualquer lugar que conhecemos, mas que votámos ao esquecimento.
Um beijo

P.S. A foto está radiosa.

12:03 da tarde  
Blogger Black Rider said...

Sim, esse é um pensamento que também me surge muitas vezes - "num outro tempo e num outro lugar vamos estar juntos aqui e agora". É como a história que me contaste a mim e ao João Nery lá no Tropical - o mar que leva o nome que escrevemos na areia também é o mar que nos trará essa pessoa de volta. Isso ficou-me na cabeça na altura e acho que faz todo o sentido. É pena que estejamos sempre a esquecer-nos e a enterrar todos esses múltiplos lugares dentro de nós. Sinto que por mais que a vida se encarregue de virar página sobre página a essência das coisas lê-se sempre no princípio - mesmo que só o encontremos, ou não, no fim de qualquer coisa. Está um incrível dia de sol... A foto "nasce" das mãos da nossa Cláudia Pinto, os raios devem-se a ela.

beijo para ti

3:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Excelente escolha, melhor fotografia...
Enquanto tivermos memória, e dela soubermos (uns melhor, outros pior) dispor, certas pessoas não nos abandonarão - com todas as "nefastas" consequências que tal implica. É, pelo menos, o que me dizem algumas vozes escritas, já que sobre a minha memória sei tão-somente que ela vem quando quer (como a música da outra) e lhe apetece - it's something one gets used to! Parece que o inverno já lá vai, mas, num dia de LOS(s) como este, agudiza-se-me o frio - e não, não é no corpo, muito menos na alma...
É no ouvido, no tímpano que se esgota a receber aquele que é, talvez, o já candidato a melhor álbum do ano - o dos Katatonia. Sim, óbvio, eu sou suspeito, mas, com certeza, algum infernauta concordará comigo...
Um abraço from this great cold distance...
João Nery

4:17 da tarde  
Blogger Black Rider said...

A memória é mesmo volátil, mas para além de ser necessário não deixarmos que algumas pessoas morram dentro de nós é também preciso continuar a fazê-las viver. Podemos abandonar-nos sempre a nós próprios, ou esquecermos simplesmente que existimos, mas é no encontro com nós mesmos - com tudo aquilo que isso tem de dramático e de cómico em tudo aquilo que somos e não-somos - que nos iremos, ou não, rever (viver e reviver) naquilo que os outros são para nós e naquilo que somos, ou não, para eles.
Sempre me impressionou esta frase do Rimbaud entranhada no seu personagem Leonardo: "compreendi também a necessidade que tinha de renunciar a este amor doloroso"; mas ainda não sei se já chegou essa hora ou se isso vale, realmente, a pena.

Ainda não ouvi o álbum de Katatonia. Neste momento os meus ouvidos estão a "rever" o Funeral dos Arcade Fire, mas estou bem longe de me sentir num velório.

abraço

4:51 da tarde  

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