segunda-feira, janeiro 18, 2010

KATACUMBA 5

- Nesses anos, pertencer a uma banda era mais do que tocar com este ou aquele elemento. Não era só música… se a música era realmente o mais importante, algo em relação ao qual tenho agora muitas dúvidas. A Banda – fosse lá ela qual fosse – estruturava as identidades de cada uma daquelas pessoas. Isso em Katacumba era um dado muito assente. De início saíamos sempre juntos para qualquer lado e calcorreávamos todos os sítios daquela época. Ao contrário da maior parte do pessoal que tocava naqueles anos, que frequentava preferencialmente o Académico, o Tropical ou o extinto OAF (o Moçambique, que ainda apanhei nos seus últimos anos já não existia) o “território” de Katacumba estendia-se por uma faixa que ia desde a Conchada até às imediações do Penedo da Saudade, mais especificamente até à tasca “o Aranha”. Naqueles quilómetros tínhamos o clubinho, o Trianon, o Gulbenkian, a Casa da Cerveja, um outro café cujo nome já não me recordo, onde depois foi a extinta loja do Nuno Gama, perto do desaparecido Ding Dong… Também íamos muito a tascas, o Aranha, a tasca do Sr. João. O único sítio da Praça da República que frequentávamos, geralmente nos fins de tarde, era o Mandarim, antes de se reciclar em Macdonalds para gáudio da estudantada no geral. Volta e meia, conforme as disponibilidades, íamos “moshar” ao States, geralmente aos fins-de-semana. De resto, não havia muito mais, ou seja… tal como hoje. Tocar na banda era andar em grupo. Onde ia um ia outro. Esse era o princípio. Nesses percursos íamos conhecendo este ou aquele, travando amizades ou nem por isso.
- Pois, isso era uma cena muito visível. As pessoas eram conhecidas como o “não sei quantos que toca nos”. Mas acho que nas bandas dos movimentos anarquistas isso já não era bem assim. Lembro-me de ver tocar bandas, muitas delas estrangeiras, que chegavam a tocar só com um dos elementos da banda. Os outros não tinham podido ir, sabe-se lá o porquê das razões. Mas a banda estava lá representada. Não era bem “a banda”, mas apesar de não ser com os seus elementos as músicas não deixavam de ser as mesmas.
- Exacto. Isso é outro dos motivos pelo qual o movimento hardcore anarquista nunca poderia ser muito representativo em Coimbra, assim como o hip hop que só nos últimos anos começou a ter expressão, através do Mc Ruze principalmente. Coimbra pode ser uma cidade grande no panorama nacional mas não é uma cidade urbana no pleno sentido. Não tem uma periferia como Lisboa e Porto, não se estende numa grande área metropolitana e, logo, não gera as mesmas dinâmicas sociais porque não existe o mesmo anonimato. Neste sentido, as identidades são mais unipessoais, já que os movimentos estão mais agregados a pessoas do que à música ou à ideologia. Por isso, mais uma vez, quando as seis, sete pessoas, que animavam a cena dos concertos em Celas se cansaram, também os concertos, todo esse movimento, chegou ao seu fim.
- É verdade. Essa cena das individualidades, de ser esta ou aquela pessoa que está em primeiro plano, é uma característica das cidades pequenas.
- A “nossa pequena aldeia”. Nem mais. A cena é que a pequena aldeia molda as mentalidades, mesmo a dos movimentos que se apresentavam contra o sistema, fosse lá quem fosse o sistema:) Com uma ou outra excepção, não deixava de existir uma óbvia conotação burguesa onde, mesmo sendo alternativas, certas tendências eram completamente rejeitadas. O hip hop nem sequer entrava, se calhar porque não existia nem existe uma vivência periférica na qual ele emergisse sem ser excessivamente aburguesado. Mas se a falta do hip hop podia ser explicada nesse prisma, o preconceito generalizado contra o metal devia-se ao facto de a maior parte das pessoas que frequentavam esses percursos o considerarem uma cena parola, dos metaleiros das periferias rurais que circundavam Coimbra, pessoal que curtia Iron Maiden ou Metallica. Tal como o hip hop, também o metal levou anos a entrar.
- É verdade. Também tenho essa impressão. Mas ainda acho que isso tudo acabou por entrar devido à globalização. Por mais que não se quisesse, também a nossa cidade não escapou a ela.
- Pois. Mas isso foi uns anos depois. Em 1993 ou 94, ainda estávamos muito longe de tudo isso. Sobre a semelhança com as gangues. Lembro-me de uma vez andarmos à porrada com outro grupo cá fora, à saída do States. Não tinham nenhuma banda, mas também andavam sempre juntos e dizia-se que também iam formar uma. Fizeram-nos uma espera. Aquilo começara na pista do States, entre o Xano e outro tipo, com um nome caricato, J. Punk, e já se arrastava há algumas semanas. Aquela cena do “chega pra lá, que a pista é minha” tinha que terminar. A pista, não deixava de ser um espaço de afirmação como qualquer outro. Isso era visível. Podia haver amizades, mas a territorialidade continuava presente. Esse J. Punk fazia parelha com outro tipo, conhecido, como é óbvio, por P. Punk. Ainda havia mais um ou dois, todos eles da mesma “família”. Andámos à porrada de madrugada. Lembro-me do Xano ter apanhado o primeiro murro do J. Punk e ter ficado sem um dente. Eu lancei-me para cima de outro Punk e aquilo deu o que tinha a dar. O Xano era um gajo bastante forte e desancou o outro gajo, não obstante ele ainda ter sacado de uma navalha. Lembro-me de termos levado o Xano ao hospital para ser cozido e, ao chegar a casa, esmurrar o carro do lado esquerdo, pois no meio da porrada tinha-me saltado a lente de contacto com um soco. Mesmo assim, acho que dei mais:) Adiante, a cena acabou mais ou menos por ali. Continuámos a ir ao States tal como os outros tipos. A questão é essa: não ficámos todos propriamente amigos, mas acabámos por nos tornarmos “camaradas”. Lembro-me de uma cena que o JJ, o mais pacífico, gritara no fim da porrada: “Nós não devíamos andar à porrada porque somos todos iguais. Ainda se fosse nos betos!”. Tem piada mas não deixa de ser verdade. Os “Punk” com quem tínhamos andado à porrada, tinham feito o mesmo com os Tédio Boys umas semanas antes. Agora davam-se todos bem. Lembro-me de estar a falar com o Kaló sobre a cena e de ele dizer que nós tínhamos uma mentalidade “psychobilly” por andarmos sempre os quatro juntos, fosse na porrada, fosse em qualquer outra cena. Ou seja, a mentalidade de gangue, onde ia um ia outro e nós íamos os quatro fosse contra quem fosse. A cena da banda, todos esses conflitos, que não deixam de ser conflitos de afirmação, ofereciam uma espécie de estatuto, das histórias que se contavam na noite, daquele ser um gajo violento, de quem deu porrada em quem. Lembro-me de uma vez, ainda com o lábio rasgado, antes de ir passar a madrugada ao hospital a ser cozido, reentrar no States e ameaçar seis ou sete gajos sem nenhum deles ter coragem para reagir.
- Eh! Eh! És um gajo pesado! Não te sabia assim…
- Ninguém no fundo era assim. A Banda, mais uma vez e fosse ela qual fosse, é que redimensionava as pessoas.
- Ou seja: andar à porrada com alguém era fazer um amigo.
- Isso mesmo.

Continua

Etiquetas:

2 Comments:

Blogger Fata Morgana said...

"Não era só música... se a música era realmente o mais importante, algo em relação ao qual tenho agora muitas dúvidas."

E tens razão! O importante eram as ideias e a motivação para as pôr cá fora.
Geralmente começava assim:

Dois amigos punham-se a falar de música e quando davam por si, estavam a planear a formação de uma banda "para mudar isto tudo".

A primeira coisa era arranjar (ou acentuar) um visual que pusesse a malta em sentido. Depois um espaço onde se pudesse fazer barulho até altas horas... o que não era nada fácil. Às vezes, quando este objectivo era conseguido, já se tinham pedido emprestados uns instrumentos a alguma banda conhecida ou amigo maluco que tinha uma guitarra eléctrica, ou ainda feito umas compras baratas numa loja de instrumentos que tinham péssimo som, etc...
Depois, ninguém sabia lá muito bem tocar e menos ainda cantar, mas - glória das glórias! - pareciam mesmo uma banda a sério!

Juntavam-se os dois amigos, e outros entretanto recrutados, na catacumba que lhes servia de sala de ensaios - geralmente um pardieiro bolorento e escuro, com ratos (ninguém os via, mas os cabos das guitarras apareciam roídos). E começavam os sons. E as palavras. Impressionantes, sem sentido, assustadores, mesmo, e essa parte é que entusiasmava a continuar: aquilo metia medo! E o medo traz adrenalina.
Um ou outro elemento, "arranhava" umas coisas num instrumento qualquer... e partia-se daí. As fabulosas músicas dos Ramones são todas baseadas em dois acordes, o que prova que bastava mesmo "arranhar", o importante era (é!) ter ideias.

De repente um acorde maluco na guitarra, duas teclas esquizofrenicamente marteladas - tudo sobre um nevoeiro de baixo e bateria totalmente indefinidos - uma frase hiper-lúcida de tão louca, mostrava claramente que havia uma música para trabalhar. E outras vinham, o difícil era a primeira!

Com o tempo alguns destes monstros transformaram-se nas coisas que marcaram definitivamente uma época. Outros morreram por asfixia, ou contaminados pelos micróbios do lugar.

:)

Também há a versão dos que já eram músicos quando decidiram formar uma banda, mas geralmente remonta aos anos 90, não aos 80. E digo geralmente porque houve excepções, claro. Estes chegaram muito primeiro às editoras e foram menos contundentes. A fase de tocar em palcos duvidosos e berrar coisas simples, saídas lá do fundo, era... se calhar fundamental! As bandas que não passaram por isso podem não ser piores, ser até muito melhores, mas parecem sempre esterilizadas :) Os monstros, mesmo quando chegam às editoras e são forçados - em nome do comércio - a fazer uma formatação que deixa para trás muito do que melhor tinham, nunca deixam de trazer consigo vestígios da imundice a que souberam resistir. E, céus!, são quase sempre os melhores!!!!

Fartei-me de escrever... este assunto mexe comigo!

Um beijo para ti.

5:38 da tarde  
Blogger Black Rider said...

Olá... descreves mesmo bem tudo isso e eu revejo-me também aí, ainda a prova de que todo esse mundo ainda está bem presente em nós... embora também sinta que sempre esteve para além de nós.
De resto, é verdade, era necessário martelar as coisas, fossem instrumentos ou gargantas, em caves, garagens, catacumbas, fosse lá o que fosse, onde, obviamente, com ou sem música, os ratos permanecem. Passar por todo esse processo era (e é) fundamental. As coisas hoje em dia estão cada vez mais plastificadas, mas é bom saber que de muitas dessas árvores... se não foram frutos o que deram, ao menos nasceram "bons espinhos", já que é mesmo isso o necessário. E, tal como dizes, os verdadeiros "monstros" vêm daí. Não só na música, mas também em muitas outras áreas, sinto-me realmente privilegiado por ter "escavado" em conjunto com alguns deles - mesmo que muitos desses monstros tenham preferido manter-se no armário ou, até mesmo, debaixo da cama. Ou como diz o Jorge Palma: "Há quem viva escondido a vida inteira".

bj!

2:24 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home

-->
Links
AINDA NÃO ME DEI AO TRABALHO DE ORDENAR ALFABETICAMENTE (AZAR!)