Frase:”Ao teu viver como se não existisse amanhã prefiro mesmo viver como se já fosse amanhã”.
NOTAS AVULSAS
Há sensivelmente 27 horas atrás, depois de umas quantas de voltas endiabradas pela Praça da República vazia, parei para tirar do meio da estrada um pequeno gato preto que ali se aninhara com medo. Mal me aproximei desatou a correr, mas pelo menos fugiu (não sei por quantas vidas de gato mais) a um atropelamento automobilístico debaixo das luzes de uma cidade apagada.
Há sensivelmente 27 horas atrás, depois de umas quantas de voltas endiabradas pela Praça da República vazia, parei para tirar do meio da estrada um pequeno gato preto que ali se aninhara com medo. Mal me aproximei desatou a correr, mas pelo menos fugiu (não sei por quantas vidas de gato mais) a um atropelamento automobilístico debaixo das luzes de uma cidade apagada.
Por que é que algo nas suas patas, ou no seu correr, me lembrou o outro? O outro que eu e os meus formandos da altura, há uns 5 anos atrás, tirámos de dentro daquela loja abandonada do centro comercial em Leiria? Arrombámos a porta, entrei para o resgatar, mas por manifesta falta de jeito quando o segurei… as suas unhas cortaram-me as mãos como uma navalha. Felizmente arranjou um dono, um dos formandos que o perfilhou dizendo “é preto, vai-me dar sorte”, antes de vir a morrer uns dois anos depois atropelado algures, já não tão incógnito, mas igualmente desaparecido, reduzido ou elevado a uma memória de um tempo distante, mas tão eternamente presente. Tão igual a uma cicatriz que não desaparece.
Pensava eu no gato quando cheguei a casa e vi o clarão vermelho do fogo em Vale de Canas. Telefonei aos bombeiros já informados do sucedido, enquanto afastava do rosto uma cinza ardente que o vento forte trouxera às sombras dos meus olhos. Sob este sinal o inevitável era uma questão de minutos.
Saiu o primeiro vizinho, ligámos a mangueira e começámos a molhar as árvores e a vegetação rasteira em volta dos prédios. Começaram a surgir mais pessoas, nessa altura já se viam as chamas (e neste preciso momento ouvem-se as sirenes) do outro lado da circular. Corri a tocar às campainhas dos prédios, corri para casa em busca dos baldes, comecei a despejá-los do meu 5º andar para cima das copas das árvores. Estupidamente não encontrei a mangueira em lado algum. Tentei improvisar uma “mutilando” o aspirador, mas só serviu para ter de ir passar a usar a vassoura nos próximos dias.
O fogo, atiçado pelo vento, galgou a circular e espalhou-se a 5 metros do meu prédio. Atingiu a rua, incendiou o carro de uma rapariga que só gritava em pânico. Ainda queria ir ao carro, banhado pelas labaredas, mas as pessoas seguraram-na. Pude vê-lo mais tarde, estava reduzido a uma chapa metálica. Depois, em menos de 2 minutos, o fogo reduziu a uma pasta de plástico alguns dos contentores de lixo. Nessa altura já os vizinhos da rua tinham aberto as torneiras das garagens e tentavam apagar o fogo que se colava à estrada. Ouvia-se o crepitar das folhas, uma ou outra árvore cedia. Eu e mais umas quantas de pessoas estivemos mais de 3 horas a entrar na mata e a deitar baldes de água por cima das labaredas.
Estranhamente, não apareceu sequer um polícia para bloquear a rua. Pelo contrário, o trânsito era cada vez maior e todos os mirones resolveram passar a madrugada em claro. Como seria de esperar parece que as pessoas preferem “espreitar” a tentar colaborar um pouco. Já que não vêm para ajudar, ao menos que não atrapalhem. Foi uma noite a meter água num Agosto de meter fogo. Quando me deitei, encharcado e a cheirar a fumo, sonhei com chamas durante as duas horas em que os meus olhos se remeteram à clausura. Quando me levantei senti o cheiro de uma manhã em cinzas.
Nota – Ainda ontem, depois de uma tarde perdida no centro comercial Dolce Vita, estranhara a cor do céu, mas não consegui deixar de a achar bonita. Mais tarde quando as labaredas estavam diante dos meus olhos e segurávamos as mangueiras ouvi a voz do meu vizinho médico dizer: “agora é que vem a parte pior, é uma autêntica tocha”. As labaredas elevaram-se diante dos meus olhos transformando a realidade num clarão vermelho mas, não obstante o desespero e o drama humano, não consegui evitar o milésimo de segundo em que o meu pensamento se viu confrontado com algo belo... apesar de mórbido.
Nota – A maior parte das pessoas ainda se recordava do grande incêndio de há 10 anos atrás, mas nessa altura estava eu no Algarve e só o vira pela televisão.
Nota – Nestas alturas revê-se uma quantidade de vizinhos com quem durante meses e anos quase que não se tem contacto. Reencontrei um velho amigo de infância e posterior companheiro de charros no início da universidade. Convidou-me para ir ver a filha pequena nascida há uns poucos de meses. Noutros anos considerava-o um hiperactivo, mas hoje é apenas um workaholic (é assim que se escreve?)
Nota – Apesar de o fogo ter atingido as ruas da cidade de Coimbra, os meios de comunicação preferem “reduzir” o sucedido a "periferias"; como se quisessem considerar como sendo rurais, ou industriais, zonas habitacionais cheias de prédios.
Nota – Fiquei pasmo quando vi que alguns vizinhos preferiram estar a filmar o espectáculo, passeando-se de câmara como autênticos Tarantinos da parvónia, em vez de deitarem mão a um balde. De todas as formas não me choca, ou esta não fosse uma cidade recheada de cromos pedantes metidos a intelectuais (tudo bem, eu sei que de vez em quando também me armo num), mas, indubitavelmente, toda a situação meteu-me nojo.
Nota – Não sei se as pessoas, realmente, só se preocupam quando o que está em causa é o seu espaço pessoal. Gostaria de acreditar que não, mas tirando alguns exemplos esporádicos…
Nota – Provavelmente depois virá o Outono do esquecimento.
Nota – Onde por mais as folhas caiam irão parecer sempre como insuficientes.
Nota – Se ainda houver folhas para cair.
3 Comments:
Há coisas que não dão para comentar poética, irónicamente ou até com um sorriso de escárnio.
Os fogos, os mortos e estropiados na estrada, a iliteracia e a ausência de exigência -para citar apenas estes, são dados (uns mais recentes que outros na história deste país)que ilustram como (e quem) se vive por cá. Mal & porcamente. Se há quem já se habituou, por experiências de vida passadas, ou quem encolha os ombros porque já nasceu neste estado de oisas e de sítio, eu não. Não gosto e dá-me vómitos.
Porque detesto "retrocessos" evolutivos da espécie.
Abraço
É verdade, Legível. As tuas palavras ilustram na perfeição este estado permanente de apatia letárgica e a forma como parecemos continuar a viver "mal e porcamente".
Mas há quem não se queira vergar a isso.
abraço!
A rapidez com que o tecido social se rompeu!... Vinte anos? Agora a realidade não existe, excepto mediatizada (não me espantam os teus Tarantinos de bairro)e começo a pensar que uma boa parte vive em estado psicótico, sem conseguir distinguir o real das imagens de ficção. Não sei se a espécie regrediu, a sociedade seguramente sim, e vai-nos formatando a todos.
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