Frase do dia: “Nunca limpes o sangue da navalha”.
“Noite, como é estranho como esta noite me lembra uma outra tão atrás, ou... se calhar nem assim tanto, não importa, mas a verdade é que me lembra aquela noite. Aquela noite. Aquela noite que sucedeu ao dia em que lhe telefonei, aquele dia tão estranho, tão estranhamente mau, tão cheio de absurdo e neurose. Como aquela noite... depois de lhe ter telefonado e ela me ter dito ao telefone que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir. Mas o que queria eu conseguir? A que se referia ela? Não sei, desligou sem me dar qualquer resposta e eu fiquei pior do que já estava. Chutado, mais uma vez por ela, carregando no meu amargo ser em chamas um peito em carvão e brasas, dei por mim a olhar para o meu reflexo exposto no microondas da cozinha. Lá dentro a carne requentada dos restos do almoço do dia anterior girava no seu disco um velho clássico pop dos anos oitenta fora de moda e esquecido, morto. Mais morto do que a própria fome que desaparecia aos poucos. Mirei o meu reflexo no espelho e vi que chorava, umas poucas de lágrimas, mas mesmo assim era certo que... chorava de todas as formas chorava mas isso já passou adiante. O meu reflexo exposto, as lágrimas, a dor profunda, pensei encarando a figura disforme do meu rosto anguloso, os lábios grossos demais, os olhos demasiado grandes, mas sangrentos, o cabelo cada vez menos e menos, não interessa, adiante, olhei para a minha imagem e pensei que teria de começar tudo de novo outra vez. Que outra vez teria de tentar conhecer outra pessoa, que outra vez teria de me fazer jogar o jogo da aceitação e da renúncia, que teria de sair outra vez, que teria de conhecer e fazer por conhecer outra pessoa. Que teria de sair outra vez para as discotecas e bares, que teria de me fazer ver e ser visto, no jogo de aceitação de papéis, do predador e da presa, das voltas e voltas da mesma procura e da mesma busca sem o mínimo nexo. Ao olhar a minha imagem expressa no microondas fiz essa constatação. Ao olhar bem para mim, para a superficialidade do meu aspecto físico, constatei que ia ser difícil. Ao fechar os olhos e a olhar para mim, mas na suposta profundidade que se pensa que se tem e se conhece, vi que ia ser impossível.
Arranquei de carro nessa mesma noite, uma noite tão igual a esta, embora todas as noites sejam sempre iguais e dizer que era uma noite tão igual a esta não passar de uma treta. Talvez um reflexo de uma luz qualquer, um pressentimento, a minha turva visão baça, qualquer coisa, me tenha feito sugerir que, nesta noite, existe uma semelhança tão vincada com essa outra, tão desgarrada no tempo, tão descarnada de sonho e esperança.
Vi-a parada encostada junto ao parque de estacionamento em obras, mini saia preta, camisa vermelha, botas de cano alto, estatura média, cabelo curto castanho, olhos verdes, vinte anos no máximo, a cidade estava cheia de carros e pessoas e ela já tinha entrado e saído de, pelo menos, uns três carros nessa noite, ou durante esse período em que eu a observava. Ainda antes rodara e rodara sem nexo, a fiar-me na sorte, espreitando as brigadas ao longe, pequena garrafa de plástico cheia de vinho verde barato, o que havia na cozinha nada de jeito, cigarro atrás de cigarro, palavra atrás de palavra, impropérios monólogos, degenerescência solitária na cidade cheia de amigos e de companhias, vem preencher a minha solidão disse eu e ela disse não vais conseguir o que queres não vais conseguir o que queres TU não vais conseguir o que queres, EU, não sei o que ela queria dizer com isso porque DESLIGOU.
EU, nada de jeito, nada de jeito, nada de especial, pobre e triste solitário, SÓ apenas sendo só e eternamente EU, condenado ao mesmo de sempre, ao falhanço e ao fim da boa vontade, não sei amar porque, talvez, nunca o soube definir, eu sei, faltou tirar o último coelho da cartola.
Vi-a parada, encostada junto ao parque de estacionamento em obras, mini saia preta, camisa vermelha botas olhos verdes peito pequeno tremendo de frio entrando e saindo dos carros que passavam e paravam e paravam e passavam...
EU perguntei quanto era ELA disse vinte euros e EU perguntei o quê e ELA disse broche e foder e EU perguntei onde e ELA disse no parque de estacionamento e EU disse está bem.
Ela disse que eu não ia conseguir o que queria que eu não ia conseguir o que queria ela disse que eu não ia conseguir.
EU disse que era a primeira vez que fazia aquilo e não sabia como funcionava e ELA disse primeiro pagas e EU paguei e disse que se calhar não era boa ideia e ELA disse já que estás aqui experimentas EU disse está bem Ela deu um gole de coca-cola foi um cliente que me deu e EU disse está bem.
Conseguir o quê, mas ela desligou o telefone e eu fiquei pior do que ainda estava.
ELA meteu-o na boca metendo o preservativo com ela e EU pus-lhe a mão no rabo e ELA disse a tua mão está fria e eu tirei-a ELA meteu-o na boca e EU voltei a meter-lhe a mão no rabo e ela insistiu a tua mão está fria.
O jogo de perguntas e respostas grita pelos seus jogadores, as voltas e voltas da cabra cega e os cornos contra o tempo Cronos, mitologia falhada de fim da estação em saldos.
EU disse não vou conseguir estou muito nervoso e ELA ficou a olhar EU disse vamos tentar de outra forma e ELA disse que outra forma EU disse tu excitas-me e EU bato uma e ELA disse está bem encolhendo os ombros e EU disse geme.
O que é que isso interessa? Um momento qualquer numa noite atrás que me lembra esta noite que daqui a uns tempos será apenas mais uma noite atrás não interessa nada.
EU fechei os dedos à volta do meu ELA gemia abri-lhe as pernas meti os meus dedos entre as suas pernas enterrando ELA gemeu mais alto EU arfava ELA apertou-me os testículos com força EU pus-lhe as mamas de fora beliscando com força.
Nada. Do nada ao nada. Nada pode vir do nada. Ex nihilo, nihil. Nada.
EU gemia arfando um carro arrancou a poucos metros do meu ELA voltou a metê-lo dentro da boca EU disse-lhe para ELA se virar e ELA perguntou para quê mas virou-se na mesma a cara contra o vidro do outro lado do meu.
Não, não sei o quê nem o que era, mas eu não consegui o que queria.
Ejaculei arfando contra o preservativo cor de rosa e ELA estendeu-me um pedaço de papel higiénico para me limpar dizendo ufa até que enfim e saiu do carro dizendo bem lá vou EU para o frio outra vez lá vou EU para o frio outra vez lá vou EU para o frio outra vez.
Lá vou EU para o frio outra vez.
Lá vou EU para o frio.
Outra vez”.
RMM (amor de mal ditos-proj.)
6 Comments:
Vim agradecer-te a leitura que fizeste do meu poema, porque não consigo fazê-lo no Nocturno com Gatos (o weblog deve estar em baixo), agradecer-te por teres deixado o poema reverberar em ti e por me devolveres os ecos. E vim para conhecer o teu blogue. Não fui além da primeira entrada, que é breve o meu intervalo de almoço, mas fiquei pendurada nas memória reelaboradas, na narrativa tão bem tecida, e tão amarga, os desencontros, o lado errado da noite, como diria o Jorge Palma, o lado errado da vida. Voltarei para ler mais.
Soledade
http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt
Obrigado Soledad. E é realmente um prazer que me tenhas vindo visitar.
O que fará com que alguém nos tente derrotar de forma tão ostensiva? Identifico-me em absoluto.
Vi as cores, a noite, a humidade, a angústia, tudo.
Potentíssimo.
Obrigado! Esta, em particular, não vai ser mesmo nada fácil. Espero que para ti, e para todos nós, ela também corra pelo melhor.
Excepcional prosa Ricardo. Abraço
Aprendi muito
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