quarta-feira, novembro 17, 2004

Frase do dia: "Pergunta, então, à tua simplicidade e vê se ela agora me diz que, desta vez, as coisas já não são tão simples".

"O meu pai. A minha mãe telefonou-me a dizer que ele ainda não apareceu. Que ele ainda não apareceu em casa e, de todas as formas, sinto que se não aparecer nunca mais... é como se me fosse, literalmente, igual. Sempre fomos uma incógnita um para o outro e agora que a minha vida se encarrega de virar a página dos doces vinte anos sei, claramente, que ambos falhámos. Posso dirigir o meu pensamento de encontro aos dias do passado que, com todas as lógicas da falta das mesmas, nada se poderá alguma vez alterar. O tempo estático avançou construindo os abismos, alimentando os demónios, construindo as jaulas onde os velhos leões se deixaram morrer pouco a pouco.
Estou eu a pensar nisso e a olhá-los. Aos dois. Pai e filho. Ambos os dois juntos. Acendo o segundo cigarro seguido e virão pelo menos mais quatro antes do almoço. Manhã fria apesar do sol, bairro social, forma educada de nos referirmos a um gueto. Periferia desenquadrada do resto e sem espaço para crescerem flores, o lixo amontoa-se por todos os cantos atraindo as moscas os cães desconfiados sarnentos os gatos trágicos as crianças sujas.
Estou a olhar para os dois e a pensar no meu pai e em mim. Ali, a criança, como se pudesse ser eu, numa réplica do tempo da infância de qualquer coisa que ficou irremediavelmente para trás. Estou a olhar para ambos, mascarando a minha certeza em relação ao incerto entre anéis de fumo e de fumo.
Reconhecem-me.
- Bom dia doutor! Tá frio!
- Sim, sr. José. Está mesmo frio!- respondo sem vontade de mexer a língua
Manhã fria, os ossos dos dedos de encontro aos dedos dos ossos. A criança tímida ao lado.
- É o seu filho?
Sim, é o filho, mas tu pai onde estás?
- Sim, é o meu mais novo o Carlinhos, ele tava para ir à tal colónia que vocês tão a organizar mas já não quer pois também vão ciganos.
- Ó Carlinhos! Não faças uma coisa destas! Nem sabes o que vais perder! Vais-te divertir bastante, tem lá piscina, parece que também se pode ir à praia, se estiver bom tempo...
- O problema são os ciganos!- replica o pai- Batem nos outros e só cá estão para passar droga doutor este bairro tá mal afamado e a culpa é deles dão má fama doutor a polícia faz cá falta pelo menos quatro patrulhas diárias deviam era metê-los noutro bairro.
- Bem, sr. José, essa é uma situação que...
- Os putos são maus, é sangue ruim ainda piores que os pretos. Se vão ciganos o Carlinhos não vai!- arremete o Pai sob o olhar encolhido do filho.
- Mas sr. José, até é bastante raro quando vai algum miúdo cigano. Os pais, simplesmente, não os deixam ir. Sabe como eles são em relação às crianças, deixam-nas andar a correr por aí mas, de resto, são super protectores. Ficam sempre desconfiados e é difícil contar com algum deles para as nossas actividades. Além do mais, sr. José, estamos a falar de miúdos de 9 e de 10 anos...
- Pois pois doutor mas se forem ciganos o Carlinhos não vai!!
O sr. José olha para o lado e vê o sr. Monteiro, cognome o Rambo, a aproximar-se-
- Boa tarde doutor! Olá ó José!!- arremete o sr. Monteiro, cognome o Rambo.
- Boa tarde amigo Monteiro! A festa estava boa ontem em sua casa. Aquilo foi a noite toda!- responde o sr. José.
- Atão não tava!- concorda o sr. Monteiro, cognome o Rambo.- Tava cá toda a família, vieram de Viseu, Mangualde. Atão eu disse para você lá ir ó homem! É festa cigana!
- Pois disse.- responde o sr. José entredentes.- Mas eu tinha que acordar cedo para trabalhar.
- Por falar em trabalho, tá na hora de ir montar a tenda. Agora tamos no descampado da fábrica velha, correram com a gente da rua do comércio. Bem, cumprimentos ó doutor.
O sr. Monteiro, cognome o Rambo, afasta-se em direcção à carripana a cair aos pedaços. A mulher já ao lado, os filhos atrás a faltarem a mais um dia de escola.
- Puta que te pariu!- vocifera o sr. José em surdina. – Não preguei olho a noite toda com o barulho pareciam que estavam a matar alguém raça maldita deviam era proteger os portugueses, mas esse, coitado, nem é dos piores ainda tem aquela história da filha, a Antonieta.
- Que história é essa?- pergunto curioso.
- Atão não sabe doutor!? Não se fala mais nada no bairro todo. Parece que tá grávida.
- A sério?
- Sim, a minha mulher ouviu os gritos numa destas tardes, tá mesmo prenha e agora nem a deixam sair de casa, vá lá que é um pedação de mulher com umas coxas, mas tá grávida e nem tá casada. Tem 17 anos e não tá casada! Para eles isso é muito mau...
- Mas, e o pai da criança, o namorado, agora as famílias vão ter mesmo de os casar...
- Não é bem assim doutor e prepare-se que isto tá a ficar mesmo mal e eu não me sinto seguro aqui no bairro vai acabar num banho de sangue. É que parece que o moço que ninguém quer dizer quem é ele é como nós.
- Como nós?
- Branco."
RMM
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AINDA NÃO ME DEI AO TRABALHO DE ORDENAR ALFABETICAMENTE (AZAR!)