segunda-feira, novembro 08, 2004

Frase do dia: "Por mais que a evites, hoje, a Luz quer-te!"

"Chamam-nos para a reunião semanal na sala da coordenadora. Sentamo-nos à volta da mesa rectangular, a coordenadora a distribuir as actas uma por uma aos demais técnicos. Sinto um certo silêncio disfarçado pelo barulho das folhas atiradas sobre a mesa. Faço o meu esquema no meu caderno preto, como se apontasse as minhas neuroses absolutistas de controle. Não é nada de especial, no fundo. Apenas uma maneira de me antecipar a sabe-se lá o quê. Como eu pensava repete-se: as duas assistentes sociais, a Magda e a Helena, sentam-se as duas, outra vez, juntas. Parecem presas ao seu próprio mundo, comentam o novo vestido florido da Magda, a Helena anuncia que, estas férias, vai até à Turquia com o marido e a filha de nove meses. Estão as duas do lado direito da coordenadora, também ela assistente social, de resto, foram todas colegas na mesma faculdade e consistem o núcleo duro cá do Centro, as únicas que pertencem ao quadro da instituição. Em frente a mim, do lado oposto da mesa, está o Jorge, o psicólogo, ar animado, o único a dar ideias aqui dentro, o único com alguma ambição. Senta-se ao lado da outra psicóloga, a Xana. Os dois falam animadamente, fazendo o meu estômago remoer numa espécie ciumenta de raiva disfarçada de silêncio. Estão ambos do lado oposto da mesa, ao meu lado está apenas a cadeira vazia do Alberto. Aponto sempre a ordem e o lugar em que cada pessoa se senta e comparo com as anotações da semana anterior. Sei porque o faço. É para traçar padrões, descortinar alianças, para saber quem interfere com quem. Não é que seja algo de outro mundo, ou que me dê muito trabalho, não é muita gente. Devem estar para chegar uns dois ou três estagiários, pelo menos é o que se espera.
Principalmente agora que a ausência do Alberto começa a ter algum peso.
Começa a ordem dos trabalhos. A Magda e a Helena começam a falar das pessoas que foram, esta semana, atendidas e o que se decidiu que cada uma deveria receber. O sr. Monteiro recebeu subsídio pecuniário no valor de... , géneros alimentares, arroz, farinha, leite em pó para a Augusta e filhos... suspendeu-se o subsídio para o Tó Mané e família suspeitos de tráfico de droga... miúdo retirado da tutela dos pais e entregue à guarida... ciganos querem criar associação no bairro... as pessoas entreolham-se.
- Só se for uma associação de traficantes!- atira a Magda.
Todos encolhem os ombros sorrindo, a coordenadora abana a cabeça num gesto cúmplice, mantenho-me neutro até à flor de sentir que não vale muito a pena. Passei a sentir que não vale muito a pena ter uma pena que valha.
Dar ideias, o Jorge sorri, fazer uma colónia intergeracional de avós e netos, sim, é uma ideia a considerar. Fazer um percurso semanal pelo bairro, numa de se conhecer a realidade social, também, sim, é uma boa ideia. O Jorge sorri, a Xana incentiva-o, não digo nem me apetece dizer nada ou coisa alguma. Criar a sala de formação... como é que isso vai? Pois.
É para mim.
- Bem...- respondo, com os olhos fixos da coordenadora sobre os meus, cinzentos esverdeados.- A sala já está criada, só falta que venham entregar o data show e o retroprojector. Afinal esse material vai ficar muito em conta, ainda vai sobrar dinheiro.
- Vai sobrar dinheiro!!- a coordenadora espanta-se.- Temos então de o gastar! A avaliação do projecto deve estar para breve e se queremos que o voltem a financiar no próximo ano temos de gastar o dinheiro todo. É isso ou da próxima vez não voltamos a receber tanto!
Fica acordado que o dinheiro restante vai ser destinado à compra de borrachas e lápis e afiadeiras. Não vale a pena referir que tudo isso já existe de sobra, é preciso ser gasto e não há outra lógica possível. Olho pela janela, os putos Edson e Júlio, ambos ciganos, espreitam pelo vidro sujo, o primeiro encavalitado num pónei. Fazem caretas, a Xana levanta-se para fechar a persiana. Dobra-se quando o faz revelando uma tanguinha vermelha a emergir por cima das calças de ganga azuis, cintura baixa, sexy, sensual, sexo. Começo a salivar de uma maneira muito pouco politicamente correcta, emitindo um barulho gutural. Tento disfarçar, não que ache que alguém reparou... pois, seria bom demais, o Jorge está a olhar para mim, ar cínico, uma espécie de rival num universo fechado e delimitado. Ela senta-se. A coordenadora recomeça a falar.
- Estes miúdos estão cada vez mais insuportáveis, agora até de burro já andam!!
- E os da Marcelina que andam de moto 4?? E o marido tem um carro novo!!! A receberem subsídio do Estado!!- atira a Magda.
- Essa família é tua!! Tens que lhes cortar o subsídio!!!- replica a Helena.
- E eu sou louca!!!- defende-se a Magda.- Aqui ninguém me paga para levar um tiro!
- É preciso ter mão nisto!!- ordena a coordenadora.
- Não era um burro, era um pónei!- digo eu.
Saímos da sala em silêncio".
RMM

3 Comments:

Blogger amok_she said...

...acho q burros são alguns/algumas do(a)s q se sentam nessa mesa...

10:24 da tarde  
Blogger Fata Morgana said...

Amok_she tem razão...

11:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Muito bem escrito. Gostei do pormenor dos detalhes. Crítica social irónica e eficiente.
Há saber nesses dedinhos :-)
Bj****
Siby
http://copulavocabular.blogs.sapo.pt/

8:06 da manhã  

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