Frase neste momento: “Que peso pode ter a voz da razão numa emoção silenciada?”.
Apesar de ter sido o dia que foi…
Não sei quem é o autor desta história, não sei sequer se foi escrita, mas contaram-me como sendo real. Foi numa sessão de contos da associação Camaleão, numa das últimas do Ateneu, que eu a ouvi pela incrível voz e presença do Serafim.
Passa-se nos anos setenta, na América do Sul, numa das múltiplas ditaduras militares de direita que sobreviviam graças à ajuda norte-americana no seu combate à proliferação do comunismo, do socialismo e da esquerda num mundo em guerra fria. Num certo sentido poderíamos fazer a analogia com a “nossa” ditadura salazarista, como se isso fosse relevante para a história. De facto não é. Mas de facto poderia ter sido em Portugal se é que, num certo sentido, não foi. Poderia até ter sido numa ditadura de esquerda que o significado seria o mesmo. Poderia até ser nos dias de hoje (completamente ditatoriais) que o significado ir-se-ia manter inalterável. Adiante.
Não sei quem é o autor desta história, não sei sequer se foi escrita, mas contaram-me como sendo real. Foi numa sessão de contos da associação Camaleão, numa das últimas do Ateneu, que eu a ouvi pela incrível voz e presença do Serafim.
Passa-se nos anos setenta, na América do Sul, numa das múltiplas ditaduras militares de direita que sobreviviam graças à ajuda norte-americana no seu combate à proliferação do comunismo, do socialismo e da esquerda num mundo em guerra fria. Num certo sentido poderíamos fazer a analogia com a “nossa” ditadura salazarista, como se isso fosse relevante para a história. De facto não é. Mas de facto poderia ter sido em Portugal se é que, num certo sentido, não foi. Poderia até ter sido numa ditadura de esquerda que o significado seria o mesmo. Poderia até ser nos dias de hoje (completamente ditatoriais) que o significado ir-se-ia manter inalterável. Adiante.
Um escritor preso pela polícia política de um determinado Estado recebia com frequência a visita da sua filha aos fins-de-semana. Era uma miúda que não teria mais de 9 anos e que sempre que se deslocava à prisão para visitar o seu pai, preso por algo que ela não entendia, – já que o pai não era “mau” – lhe levava sempre um dos seus desenhos. Eram sempre desenhos simples, enfeitados de várias cores, pejados de animais, pejados de árvores, pejados de frutos. No entanto, sendo o controle sistemático e a prevenção à subversão ideológica os maiores sustentáculos de todas as ditaduras (democráticas incluídas) todos os desenhos que a miúda levava ao seu pai eram alvo de uma triagem censória/inquisitória para se averiguar de que os desenhos não seriam subversivos ou estariam pejados de mensagens subliminares.
Sendo assim, era sempre com espanto que a nossa jovem reparava que muitos dos seus desenhos eram confiscados pelo departamento de controlo do estabelecimento prisional. Certamente a miúda nunca se havia debruçado com particular atenção na linguagem dos símbolos e tudo aquilo que cada um neles quer ver.
Por isso, era sempre com espanto que via os seus desenhos com pássaros voarem para as mãos dos guardas e aí ficarem. Era sempre com espanto que via as suas pombas brancas amarelecerem nas mãos dos mesmos guardas. Foi também com espanto que viu a mulher grávida que ela vira na rua, que lhe dera tanto trabalho a desenhar, ficar embalada no berço de dedos retorcidos dos homens que se dedicavam a esse tão nobre ofício de cortar, de censurar, de não ter de explicar nada.
Por isso, era sempre com espanto que via os seus desenhos com pássaros voarem para as mãos dos guardas e aí ficarem. Era sempre com espanto que via as suas pombas brancas amarelecerem nas mãos dos mesmos guardas. Foi também com espanto que viu a mulher grávida que ela vira na rua, que lhe dera tanto trabalho a desenhar, ficar embalada no berço de dedos retorcidos dos homens que se dedicavam a esse tão nobre ofício de cortar, de censurar, de não ter de explicar nada.
Todas estas coisas deixavam, como seria óbvio, a miúda em lágrimas. Ela queria que o pai visse os seus desenhos. Não obstante a prisão e a liberdade… os pássaros são apenas pássaros. Não obstante a paz e a guerra… as pombas brancas são apenas pombas brancas. Não obstante a morte e a esperança que vive nos dias de amanhã… uma mulher grávida é apenas uma mulher grávida. Não obstante as certezas incertas de quem cria… os desenhos são apenas desenhos de uma filha para o seu pai.
Até que…
… um dia a menina chegou à prisão com um desenho. Mal entrou no pátio, murado de homens com metralhadoras como num exército de sombras, um braço forte a ergueu pelo ombro enquanto lhe perguntava: o que levas aí?
- Um desenho para o meu pai… – balbuciou a medo a menina.
- Dá-mo. – fez-se ouvir a voz seca do guarda prisional.
Sim, era mesmo um desenho. Disso o guarda não tinha dúvidas. No desenho não existia nenhuma mulher grávida, nenhuma pomba branca, não voava nenhum pássaro. Era apenas uma árvore. Uma árvore com frutos. É verdade que aqueles eram os frutos mais estranhos que o guarda vira na vida. No entanto atribuiu tal facto à imaginação fértil da menina que ainda não sabia que determinados frutos, com essa forma tão estranha, nunca poderiam existir neste mundo. “Bem, vai lá”, balbuciou o guarda. E a menina foi. A correr. Ter com o seu pai.
Mal entrou na cela, depois de se terem abraçado, de se terem beijado, depois de o pai ficar feliz por tudo estar a correr bem na escola, a menina deu-lhe o desenho que tanto tempo lhe demorara a criar. O pai sorriu.
- Que lindo, filha… Mas que frutos são estes na árvore? Não consigo saber o que são. – perguntou o pai algo perplexo.
Ela olhou-o nos olhos…
- Mas pai… isso não são frutos! São os olhos dos pássaros! Vieram ver-te! Vieram ver-te a ti.
… um dia a menina chegou à prisão com um desenho. Mal entrou no pátio, murado de homens com metralhadoras como num exército de sombras, um braço forte a ergueu pelo ombro enquanto lhe perguntava: o que levas aí?
- Um desenho para o meu pai… – balbuciou a medo a menina.
- Dá-mo. – fez-se ouvir a voz seca do guarda prisional.
Sim, era mesmo um desenho. Disso o guarda não tinha dúvidas. No desenho não existia nenhuma mulher grávida, nenhuma pomba branca, não voava nenhum pássaro. Era apenas uma árvore. Uma árvore com frutos. É verdade que aqueles eram os frutos mais estranhos que o guarda vira na vida. No entanto atribuiu tal facto à imaginação fértil da menina que ainda não sabia que determinados frutos, com essa forma tão estranha, nunca poderiam existir neste mundo. “Bem, vai lá”, balbuciou o guarda. E a menina foi. A correr. Ter com o seu pai.
Mal entrou na cela, depois de se terem abraçado, de se terem beijado, depois de o pai ficar feliz por tudo estar a correr bem na escola, a menina deu-lhe o desenho que tanto tempo lhe demorara a criar. O pai sorriu.
- Que lindo, filha… Mas que frutos são estes na árvore? Não consigo saber o que são. – perguntou o pai algo perplexo.
Ela olhou-o nos olhos…
- Mas pai… isso não são frutos! São os olhos dos pássaros! Vieram ver-te! Vieram ver-te a ti.
Vieram te ver.
A ti.
8 Comments:
“Que peso pode ter a voz da razão numa emoção silenciada?”
Infelizmente, nenhum! Começo a chegar à conclusão, de que a razão só aos que (ainda) sonham interessa. E esses são cada vez menos.
Como já se calculava, não era só em Portugal que os censores eram pouco inteligentes!... Quanto à história, fiquei curioso em lê-la, pricipalmente pelo seu final. Vai já para o bloco de notas! Quanto a ti, meu caro, revelas um enorme talento para contar histórias - as tuas, claro, ou as de outro/a. Uma vez mais, obrigado por partilhares. Quanto à tua "frase neste momento": talvez quando uma emoção chega ao ponto de (ter que) ser silenciada, pouco ou nenhum peso terá a voz da razão. Enfim, nunca vivi num período ditatorial - se bem que também não sou idiota o suficiente ao ponto de achar que vivo em plena liberdade! Mas isso são outras histórias...
Abraço,
A Voz da Serpente
É pena, eyeofhorus, mas tem mesmo cada vez menos peso. E também cada vez menos são os que ainda sonham. E são (ainda) cada vez mais aqueles que se deixam aprisionar pelo silêncio - emocionalmente, racionalmente, de todas as formas possíveis,por todas as grades.
É mesmo uma história muito bonita, amigo, senti isso quando a ouvi contada e retratei-a da forma que consegui. E... sim, a voz da razão nem sequer se ouve quando a emoção se silenciou ou a silenciaram.
E às vezes nem são precisas grandes ditaduras para isso. Bastamos nós mesmos.
abraço
bonita história. só não concordo com essa tua insinuição de que o nosso actual regime político se equivale a uma ditadura. é falso e só pode dizer isso quem não viveu numa, como nós, que já nascemos depois de abril. o nosso regime pode ser corrupto,mas nele existe liberdade de expressão e isso faz toda a diferença. num regime realmente ditatorial podias ser preso por escreveres o que escreves neste blogue...
um regime ditatorial é um regime em que as pessoas de bem vivem com um medo físico, medo de serem torturadas, mortas. medo de que façam mal aos de quem gostam. Lê o "1984" do Orwell, por exemplo, e vês isso.
nós nesta sociedade podemos ter outros medos, mas não temos esse pavor que amordaça.
há uma corrente no ocidente que quer desprezar o que temos, relativizar as conquistas da nossa civilização (como se vê nesta questão dos cartoons). é demagogia ou tontice. a nossa civilização, com todos os seus defeitos, é a melhor que o Homem realizou ao longo dos milénios. devemos estar orgulhosos disso e querer mais e melhor...
Abraço!
É verdade, Paulo, mas não deixa de ser mesmo uma insinuação. Felizmente não vivemos numa ditadura - pelo menos desse tipo. Agora temos outras, de outro tipo, mas seguir por aí seria abrir um debate que é algo escusado aqui - a história não reflecte isso, mas não creio que as prisões democráticas norte-americanas, por exemplo, sejam lá muito diferentes, não é? A minha insinuação não se prende, unicamente, com o caso português. Obviamente que em termos de liberdades não se pode comparar (em termos que possam ser consensuais) este regime de democracia (por mais de castas que seja) com o outro no qual os nossos pais viveram - mesmo que um mundo "nasça" do outro e não seja criado a partir do nada.
Acho que todas as civilizações lá terão os seus defeitos e virtudes, mas não convém esquecer que aquilo a que apelidamos Oriente deve esse termo porque o Ocidente assim o determinou (o mesmo é aplicável a Extremo Oriente). É óbvio que prefiro viver "em alguns" valores desta civilização - se calhar porque fui formatado para isso. Apenas não concordo nem posso concordar com a ideia de "melhor ou pior" - já que essas definições surgem como consequência de uma escala de valores.
Democracia, por exemplo, democratizar os outros é trazê-los para a nossa escala, mas num sentido em que eles, aí sim, passam a ser inferiores - já que as suas democracias serão sempre imperfeitas face ao modelo ocidental padronizado. Desta forma, torna-se semelhante ao "Pizarro" aportando na América do Sul para evangelizar os índios (colocá-los na mesma escala e mostrar a sua inferioridade - sem contar com pilhagens, violações e abusos).Impor qualquer tipo de valor é sempre ditatorial, quer se trate de uma visão única do Islão, quer se trate da democracia - ambos se complementam, segregam enquanto pregam que estão a unir. Tal como Israel e os EUA podem desenvolver energia nuclear e o Irão não pode (embora o Irão seja uma "democracia").
"De que lado da arma estás?", a única lógica com que não concordo é a da hipocrisia.
É normal que, nascendo e crescendo aqui, me reveja em alguns dos valores, mas se estivesse noutro contexto era capaz de dizer outra coisa - como se duas coisas, aparentemente diferentes, se tornassem análogas e, por isso, essas mesmas coisas têm sempre um peso relativo ou convém relativizá-las. Não escolhemos onde nascemos e, num certo sentido, há muitos valores que não escolhemos, não deixando, todavia, de sermos educados neles. Existe alguma liberdade de escolha, mas escolhemos num leque pré-definido, embora seja muito bom (ainda) podermos escolher. Sendo assim, torna-se difícil conceber outra(s) vida(s) em que alguns valores não estejam presentes.
É óbvio que a liberdade de expressão é importante, mas, tal como me disse o meu amigo árabe sobre a história dos cartoons, acho que se está a dar demasiada importância a isso. Cada um começa a acender o rastilho que deseja segundo os seus próprios interesses."A vida é mais emocional que racional", as pessoas esquecem-se disso muitas vezes.
Hoje li a "crónica" do Pacheco Pereira no Público a propósito dos cartoons. Para o PP não há qualquer problema em cartoonizar criticando o Islão ou Cristo dessa forma (mas sempre ostentando a segregação dualista do nós-superiores/eles-inferiores). Tudo "bem" quanto a isso, é a sua opinião e vale o que vale quando vale. Mas sempre gostava de saber se a opinião do PP ir-se-ia manter igual se o visado fosse ele próprio, mas retratado de uma forma realmente "original". Ora aí está uma questão importante e serve de desafio ao amigo que sabemos. Se o PP ficasse realmente "na boa", aí sim, só podia mesmo subir na minha consideração.
Não é só liberdade de expressão que falta neste mundo, é humor.
Concordo contigo - devemos querer mais e melhor, mas sem excluir ninguém de tudo isso e ensinando e aprendendo com todos.
abraço para ti e vê se apareces por cá
concordo com a tua tese excepto num ponto. Correndo o risco de ser politicamente incorrecto, eu acho que há melhor e pior, superior e inferior. E não se trata de uma apreciação racista ou paternalista. Tb n concordo com a "democracia" que os americanos querem impor no Iraque e noutros sítios. Para atingir a democracia é preciso percorrer um longo caminho, é por isso que os nossos amigos nórdicos têm uma sociedade muito mais justa... e democrática do que a nossa.
Acho que há culturas melhores (mais justas, mais livres) e piores e não acho que seja possível, por exemplo, comparar a Dinamarca com a Arábia Sáudita.
Mas isso não significa que eu pense que a cultura saudita deva desaparecer. Acho que deve caminhar para melhor, desde que seja essa a vontade dos sauditas. As mudanças não devem ser impostas por forças exteriores ou neo-colonialistas O caminho faz-se caminhando todos os dias. "You got to get behind the mule in the morning and plow:"
Abraço!
É verdade, Paulo, eu entendo o teu ponto de vista embora não me reveja completamente nele - mas, sim, temos muito que aprender com as democracias nórdicas. Temos é que entender o mundo como um processo e não como um estado em si - ou inalterável na sua génese presente. No entanto, acho que há muita hipocrisia. Por exemplo, a França que tanto nos vendeu as ideias de liberdade, igualdade, etc., que sempre ostentou como bandeira a libertação de Paris aos nazis, não se coibiu de matar um milhão de argelinos na guerra de independência dos anos 60 - e aqui falamos muito da II Grande Guerra, mas esquecemos todas as outras de sangue. E esta lógica tem sempre a ver com o lado da barricada em que te puseram. De facto, pegando no regime saudita, ele é um dos mais corruptos que existe e em que há uma diferença mais abissal entre ricos e pobres - e é nesse espaço de desigualdade extrema que aqueles a quem se apelida de "fundamentalistas islâmicos" encontram a sua zona de influência. Num certo sentido podemos traçar a analogia com os grupos marxistas dos anos 60 e 70 - só que, ao contrário do que diria o Nietzsche, Deus não morreu (estando ainda por averiguar se o Marx/Engels/Bakunine se hão-de levantar da tumba). Deus é tão invocado no mundo islâmico como nos EUA, não deixa de ser curioso, embora o mesmo não se passe na Europa.
Concordo que existam valores mais justos... Apenas não concordo nem aceito a democracia como o último dos sistemas ou um fim último - acho que se pode e se deve ir muito mais além. Não se deve insistir num dogma, na imutabilidade de todas as coisas; já que isso é afirmar a democracia como um valor sagrado e isso não é diferente de qualquer fundamentalismo religioso cristão, judeu ou muçulmano. Tal como o marxismo falhou ao querer falar em "fim da história" - esta história ainda nem sequer começou.
A história da Europa é escrita a sangue, muito desse sangue não é europeu. Não concordo com sentimentos de culpa nem com paternalismo, mas convém lembrarmo-nos disto. O profeta Muhammad sempre foi ridicularizado no mundo ocidental, muito antes dos cartoons. Uma dessas ridicularizações foi o compararem-no com Cristo, como se este fosse um produto menor deste último. O Islão aceita todos os profetas, Moisés, Jesus e Abraão (o pai de todos), aceita todos os livros sagrados. O mesmo não acontece com o cristianismo, muito pelo contrário, ou com o judaísmo. Laica ou não, as nossas sociedades têm muito de moralismo cristão (particularmente católico) na sua formação de base. Edward Said explica muito bem estes aspectos no livro Orientalismo, vale a pena ler.
Também acho que o caminho se faz caminhando todos os dias. Estamos cá para isso.
abraço
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