- Não deixa de ser engraçado. Mas lembra um pouco a primária…
- É mesmo isso! Mas a verdade é que estar na cena das bandas era estar no liceu, na escola, no infantário, tudo isso ao mesmo tempo. Um punhado de gajos barbados com alguma atitude, fosse lá em relação a quê. A qualquer coisa. Mas hoje, não obstante as inevitabilidades, o estar domesticado, a idade, o pagar as contas, não importa, a maturidade, porque acredito plenamente que hoje sou uma pessoa muito mais madura, mal seria se assim não fosse, não deixo de concordar que esse processo foi indispensável para esse amadurecimento, para esse crescimento. Apesar de ter deixado mazelas, danos irreparáveis, principalmente na carreira académica, mas isso seria outra história. Mas acredito, acredito cada vez mais, a sociedade até pode criar os revoltados que se revoltam contra ela, mas estes têm sempre de surgir. Não acredito que um puto que sempre se acomodou, que inculcou as tretas do “yes, man and mom”, possa ser realmente relevante para as transformações que têm de surgir. Pelo contrário, provavelmente será o inimigo. É sempre preferível a revolta. Fabricada ou não, cria homens e mulheres melhores. Por mais naif que fosse isso tudo. E era.
- Concordo plenamente. Hoje em dia caminha-se para uma plastificação ainda maior. Eu sei, eu sei que todas as gerações sempre disseram isso em relação às mais novas, mas as tretas da globalização, desse mesmo processo multiplicam-se exponencialmente. Os situacionistas falharam no meio de comunicação, qual televisão qual quê, mas de resto a revolução, essa, de tanto se repetir diariamente torna-se num mero simulacro…
- É verdade, mas naquela altura nada daquilo era sentido como simulação. Mesmo essa cena das gangues, com Katacumba isso era muito mais extremo do que com as outras bandas. Esse foi um dos motivos pelos quais a banda começou gradualmente a ser segregada. Não ia aos circuitos habituais da Praça, não fazia muitos amigos fora do círculo de proximidade. Havia uma certa ideia de que isso seria promiscuidade. A maior parte dos amigos estava a um passo pequeno da marginalidade, se é que muitos já lá não estavam. Por isso é que fulano, ainda hoje, está agarrado ao cavalo há anos, o não sei quantos morreu engasgado no seu vómito alcoólico, o outro está preso. Dezenas de histórias assim. Enfim, grande parte deles não era classe média, apesar de todos nós o sermos, muito mais violentos e muito mais extremos, do género de andarem com navalhas, roubarem sem nenhum escrúpulo, cortarem-se, tentarem suicidar-se, uma marcada tendência borderline. Grande parte era de famílias pobres e disfuncionais e com poucas perspectivas de um futuro minimamente estável. Com as outras bandas isso não era assim. Basta pensar no que era algum do séquito dos Tédio Boys ou, mais tarde, dos Belle Chase Hotel. Tirando as óbvias excepções, um desfile de barbies e de roys que se arranjavam para ir aos concertos, que gostavam dos Tédio Boys ou da cena deles, mas que na prática não gostavam da cena alternativa no seu lado mais underground. Que durante a semana se refastelavam nas suas existências burguesas e poupavam a brilhantina para o fim-de-semana. Ou, posteriormente, em relação a muitos outros, na suposta intelectualidade cultural do café Tropical, ou TAGV nos seus tempos mais glamorosos, antes da branca de neve, inevitável, pelas mãos dos dealers de sonhos que sempre cavalgaram a noite coimbrã, minar por completo tudo aquilo. Mas é como em qualquer casa, em qualquer ser humano – só cai o que tem de cair. De resto, tudo isso era estranho para Katacumba, particularmente nos primeiros anos. Andávamos juntos, vestíamo-nos de preto, doc martens, fumávamos umas quantas, bebíamos além da conta e escolhíamos o nosso próprio roteiro. Faltávamos às aulas para isso.
- Queres dizer que Katacumba era uma banda muito mais unida do que as outras?
- Na prática não sei, teoricamente era verdade ou acreditávamos que assim era. Mais uma vez: isso nos primeiros tempos. Havia uma ideia muito forte de cerimonial, de ritualismo, algo que não estava presente nas outras bandas da altura. Lembro-me de tanto usar o símbolo anarquista como a cruz invertida. Houve um momento muito particular. No início de 1994 morreu um amigo nosso num desastre de carro, ia como pendura num Saab 900. Chamava-se Luís “G.”. Creio que ainda seria menor, talvez uns 17 anos. Um rockabilly moreno que vivia com a mãe e com a avó. Aquilo foi muito forte na altura. Um grande choque para todos nós. No mesmo acidente, outro amigo, o Miguel Caldeira (RIP 2007) ficou em coma durante uns dias. Fomos todos ao funeral, grande parte dos que lá estavam eram putos, quase todos assíduos dos mesmos antros. Nós, os quatro da banda, usávamos um fio com uma caveira ao pescoço. E quando o coveiro despejou a terra para cima do caixão cada um de nós arrancou o seu fio e atirou-o para a sepultura.
- Uma história algo… mórbida… Mas não deixa de ter o seu quê.
- O mais mórbido é que a rapariga que o namorava viu morrer o seu namorado seguinte num outro desastre de carro. Ainda não tinha passado um ano. Chamávamos-lhe a “viúva negra”.
Continua
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